Mulheres que amaram animais
"Leda e o cisne", a partir dum quadro de Miguel Ângelo.
São sem dúvida casos diferentes: afinal, Leda foi enganada por um deus disfarçado de cisne (devia sentir-se honrada com a visita, imagino), enquanto Pasífae desejou voluntariamente unir-se a um touro. Isto de voluntário não é bem assim. Pasífae foi a vítima escolhida pelo deus Poseidon, que queria vingar-se de Minos, o marido de Pasífae, por este o ter desrespeitado. Poseidon enviou então um magnífico touro branco como oferta a Minos, e com a ajuda de Afrodite fez com que Pasífae se apaixonasse pelo animal. A rainha pediu auxílio a Dédalo, o engenhoso Dédalo que mais tarde construiu o labirinto. O inventor criou uma vaca de madeira dentro da qual Pasífae se escondeu para seduzir o touro e unir-se sexualmente a ele. A história não teve um final feliz: desta união, nasceu o Minotauro, o monstro devorador de homens.
Pablo Picasso, "Pasifae".
André Masson, "Pasifae".
Leda é um outro caso: o da mulher desejada que acaba seduzida (como tantas outras) por Zeus. O pai dos deuses assume a forma dum cisne, e seduz e viola Leda numa noite em que esta dorme também com o marido, o rei Tíndaro. Desta dupla cópula nasceram os gémeos Castor e Pólux, e as também irmãs Helena (a de Tróia) e Clitemnestra. O tema de Leda e o Cisne teve grande sucesso entre os artistas do Renascimento, na sua exploração dos temas da antiguidade clássica. Afinal, permitia-lhes pintar aquilo que nunca poderiam representar entre dois seres humanos: sexo explícito.
Também Pasífae teve sucesso artístico, mas - talvez por a maior parte da arte que nos chegou ter sido feita por homens? - é a imagem da submissa Leda que predomina. Os homens sempre gostaram de ver mulheres a fazer coisas ousadas, sexualmente falando, e Leda encaixa perfeitamente nestas fantasias. Quanto a Pasífae, era o retrato duma mulher sem moral, que no fundo praticava o bestialismo. Como se isso não bastasse, era irmã de Circe e como esta tinha poderes de feitiçaria. Nada de bom se poderia esperar de uma mulher assim: uma mulher que dorme com quem quer, animais incluídos, é a origem dos mais terríveis males e monstruosidades.
Fresco Casa de Vettii, Pompeia: Pasífae e Dédalo com a vaca de madeira
Correggio, "Leda com o Cisne"
Outras culturas têm as suas próprias lendas e prescrições sobre o bestialismo e em várias religiões os deuses mascaram-se de animais para se relacionarem, sexualmente ou não, com os humanos. Seja qual for a moralidade destas histórias da mitologia grega, a verdade é que são terreno fértil para poetas e pintores. Gosto particularmente, no caso de Leda, do quadro de Correggio e de um outro feito a partir de Miguel Ângelo. E pessoalmente subscrevo as palavras do romeno Marin Sorescu, cujo poema se transcreve abaixo: Grande puta,/ esta Leda / Por isso é que o mundo continua/ Tão bonito.
Aqui ficam alguns poemas sobre Leda: Leda, de Marin Sorescu
Leda passa sorrindo Por entre as coisas E vai para a cama Com todas elas.
O muro fez-lhe um filho Da hera, O sol fez-lhe nascer Um girassol.
Ela fez amor às claras Com todos os bois, À cabeça o boi Apis, Mas, diabos a levem, Nem sequer se nota.
Grande puta, Esta Leda, Por isso é que o mundo continua Tão bonito.
Leda e o Cisne, de W.B. Yeats (tradução de Paulo Vizioli)
Súbito golpe: as grandes asas a bater Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter; O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.
Dedos incertos de terror, como empurrar Das coxas bambas o emplumado resplendor? Pode o corpo, sob esse impulso de brancor, O coração estranho não sentir pulsar?
Um tremor nos quadris engendra incontinente A muralha destruída, o teto, a torre a arder E Agamêmnon, o morto.
Capturada assim, E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder, Antes que a abandonasse o bico indiferente.
Leda, de Ruben Dario
El cisne en la sombra parece de nieve; su pico es de ámbar, del alba al trasluz; el suave crepúsculo que pasa tan breve las cándidas alas sonrosa de luz.
Y luego en las ondas del lago azulado, después que la aurora perdió su arrebol, las alas tendidas y el cuello enarcado, el cisne es de plata bañado de sol.
Tal es, cuando esponja las plumas de seda, olímpico pájaro herido de amor, y viola en las linfas sonoras a Leda, buscando su pico los labios en flor.
Suspira la bella desnuda y vencida, y en tanto que al aire sus quejas se van, del fondo verdoso de fronda tupida chispean turbados los ojos de Pan.
De Pasifae, a terminar, um poema em inglesa de A.D. Hope pode ser lido neste site.
Baixo-relevo de Leda e o Cisne, autor desconhecido.
Leda, por Dali
Leda e o cisne num mosaico cretense
Paul Cézanne, Leda e o Cisne
Matisse, Leda e o Cisne