Pelo direito de morrer
Meu avô paterno um dia me disse que o homem que acredita ser livre é estúpido. Meu avô, que morreu sem acreditar que o homem foi à Lua, sabia – na sua mais simples concepção de mundo – sobre as questões que definem o ser humano. E, com sabedoria, meditava acerca delas. Quando assisti ao filme “Mar Adentro” (2004) me lembrei de suas palavras. “O homem não é livre, nem ao nascer, nem no viver e nem ao morrer. A única coisa livre que existe é a vontade de o ser.”
Ramón Sampedro é um pescador que fica tetraplégico com 25 anos de idade, após um acidente de mergulho. Ramón vive numa cama, totalmente dependente. Precisa do auxílio de amigos e familiares para executar as tarefas mais habituais. O que para qualquer homem é uma simples ação, para ele é uma verdadeira odisseia de superação. E odisseias, cá entre nós, cansam. Ramón se cansa. A única forma que ele encontra para sair de sua atroz condição é olhar pela janela e ali ter um momento de abstração. A janela de seu quarto, que lhe dá acesso ao mundo, o encara implacável, desafiando-o na sua total incapacidade. Mas Ramón revida. Deitado, sente a refrescante brisa que entra pelos caminhos por onde o vento avança, e sonha com o que poderia fazer se a esperança ainda lhe restasse em algum canto da alma. Sonha como sonham os meninos que abrem os braços para o mundo. Mas apenas sonha. E sabe que não pode viver de sonhos, embora já o tivesse feito por quase 30 anos depois do acidente.
De um passado livre à paralisia do presente e à impossibilidade de um futuro. Ramón conclui que a vida jamais lhe dará opções e escolhe livrar-se do sofrimento e libertar seu corpo e alma daquela cama. Começa, então, uma luta contra o sistema. Ramón, sob os holofotes, discute até que ponto chega nossa suposta liberdade individual e defende que é direito de todo o ser humano ter controle sobre o próprio corpo – a única coisa que realmente possuímos. Quer provar que a escolha pela morte assistida está além de qualquer sanção jurídica e que o Estado não pode obrigá-lo a viver naquelas condições. Por querer morrer dignamente recorre aos tribunais superiores da Espanha e à Comissão Européia de Direitos Humanos, provocando uma verdadeira crise ética na sociedade espanhola, a qual se divide perante o drama do pescador. A estória de Ramón é verídica, levada às telas pelo diretor Alejandro Amenábar.
A filmografia de Amenábar – chileno radicado em Madri – ainda é modesta. No entanto, sua lista ostenta nomes como Abre los ojos (1997) – refilmado em 2001 sob o título de Vanilla Sky – e Os Outros (2001). Excelentes trabalhos que exploram a nossa necessidade de reafirmar a própria existência, assim como nosso potencial em transfigurar realidades e revolver possíveis identidades a fim de lidarmos com as variadas questões existenciais. Medos, anseios, angústias, solidão. E é por meio de metáforas que Amenábar, brilhantemente, disseca tais temas em seus filmes. Mas, em minha opinião, sua nota mais alta está nesse fantástico Mar Adentro (2004), que conta a estória de Ramón.
Esse drama também nos faz pensar no egoísmo em que estamos constantemente inseridos. Apesar de todo o seu desgosto, Ramón era famoso pela gentileza e serenidade de espírito. O seu sofrimento não o esvaziou em mágoas e ressentimentos, mas o ensinou a chorar com sorrisos, como ele mesmo afirmava. Ele tinha todas as desculpas para jamais sorrir novamente. Mas preferiu usar seus limitados recursos para elucidar a felicidade de outrora. Esta é a parte em que seu drama nos fala sobre a coragem que um homem é capaz de ter. E sobre a capacidade de um homem sorrir, mesmo indo ao encontro do próprio instinto de sobrevivência. Além de permear essas questões particulares, o filme convida a sociedade a refletir sobre o que é realmente importante: viver dignamente ou apenas viver? Viver ou apenas existir?
Sampedro morreu no começo de 1998, por envenenamento de cianeto de potássio. Uma amiga próxima chegou a ser presa sob a acusação de que ela teria ajudado no suicídio, mas foi liberada por falta de provas. Anos mais tarde, a amiga confessou ter ajudado Ramón por amor.
O filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e foi indicado a outras duas categorias: a de Melhor Maquiagem e a de Melhor Ator em Drama para Javier Bardem – que, aliás, merecia a estatueta pela sua mais extraordinária atuação no cinema. Além disso, o filme ganhou outros incontáveis prêmios nos festivais de cinema ao redor do mundo, como o Prémio Goya e o Festival de Veneza.