Anatomia da traição: entre a moral e a ciência
© "O Fabricante de Máscaras", (Wikicommons, Carlos Orduna).
“Até tu, Brutus?”
Para a comunidade ocidental, em geral, a simbologia do acto de “trair” está revestida de uma carga bastante negativa ou até criminosa. Hoje, o conceito de “traição” é, aparentemente, visto com vulgaridade mas com frequência como um ataque (o nome carrega, em si, esse peso) à intimidade do ser humano que sofre tal prejuízo. Na prática, a “traição” pode revestir inúmeros formatos e muitos deles dependem da interpretação de quem avalia o gesto. É fácil entender alguns gestos como consensualmente “traiçoeiros” - por exemplo, o contar de um segredo sem que determinada pessoa, que confiou, saiba; ou outros que poderão dar a entender muito pouco, sem deixarem de ser “traiçoeiros” - como um olhar “extra-conjugal” ou até um breve pensamento “desviante”. Certo é que este comportamento depende, essencialmente, da interpretação, não deixando de ser parte da existência humana e, como qualquer comportamento, de influenciar decisivamente a história dos povos.
© "Sansão e Dalila", Sir Anthony Van Dyck, (Wikicommons, Google Art Project).
A “traição” encontra-se em diversos episódios curiosos e sugestivos da História. Na Bíblia, por exemplo, começando pela morte de Abel por Caim: este último levou o irmão para um campo, sem que Abel se apercebesse das suas verdadeiras intenções, tendo como motivo a preferência divina para com Abel, cujas ofertas Deus preferia. Para alguns católicos, é o primeiro homicídio da Humanidade resultante de uma traição - já que a primeira traição teria sido a de Adão a Deus, ao trincar a maçã.
© "Judas a receber pagamento para trair Jesus Cristo", Lippo Memmi (Wikicommons).
© Mural de Rivera pintado no Palácio Nacional, México, (Wikicommons).
Já no período clássico, fora dos textos bíblicos, Álvaro Oppermann lembra-nos a Batalha de Termópilas (480 a.C.), entre uma aliança de “pólis” gregas (liderada por um rei espartano) e os persas. Efialto, grego, sabia de um segredo geográfico-estratégico, ou seja, uma passagem por entre as montanhas, até à “retaguarda grega”, e contou-o ao inimigo. Efialto terá sofrido uma maldição por parte de Ares, deus da guerra, num período em que “trair era agir contra os deuses”. Este erro vulgarizou-se mas, de tão receado que era, passou a ganhar relevo jurídico na Roma Antiga, com a definição do conceito “crimen maiestatis” para actos de “lesa-majestade” - actos contra o Estado, onde se incluiríam algumas “traições à pátria” ainda que esta não existisse definida como tal. Contudo, só no período medieval é que a definição de “traição” ganha contornos mais personalizados e é reconhecida como um “atentado” - normalmente, a um senhor temporal, rei ou papa, que representa um povo. “A quebra da hierarquia configura o delito”, refere Oppermann.
Shakespere, na tragédia “Julius Caesar”, imortalizou a expressão “et tu, Brute?”, quando Brutus, na tentativa de usurpar o poder do imperador romano (seu pai, Júlio César - supostamente adoptivo), traiu-lhe a confiança, apunhalando-o. É uma expressão que persiste no tempo. A história mostra-nos que o conceito de “traição” não se prende à dimensão conjugal ou da amizade, por exemplo, mas tal nem sempre se percebe. Nem sempre se entende a traição fora do contexto amoroso ou da amizade.
Traição: entre a moral e a ciência A traição existe desde que há vida em sociedade, precisamente, porque também advém da Humanidade. Mas, mesmo que o gesto se relacione, intrinsecamente, com o comportamento humano, a educação, mais do que a cultura, pode ser o factor que torne a “traição” menos comum ou, simplesmente, menos visível. Em sociedades onde a ideia de “traição” é, frequentemente, vista como uma forma de comportamento humano e não tanto como um desvio do bem-estar social, poderão existir riscos de uma habituação social a esse fenómeno que pode, mais do que tudo, gerar sensações cada vez mais frequentes de hiperrealismo social. Ou seja: podemos deixar-nos confundir acerca da percepção do significado mais verdadeiro do comportamento humano e da realidade social. Um comportamento que, inicialmente, é considerado lastimoso por revestir uma traição e que, não deixando de ser lastimoso, continua a ser praticado cada vez mais no relacionamento entre as pessoas, pode ajudar a que estas passem a considerar “normal” o comportamento em causa. Ou “aceitável”, por ser “normal”.
© "Action Speaks Louder When not Betrayed By Words", (Wikicommons, U.S. National Archives and Records Administration).
A “plasticidade humana” é, na linguagem das ciências sociais e humanas, uma das características do ser humano que o permite adequar-se a realidades, físicas e psicológicas, bastante distintas daquelas em que começou por ser educado. A partir de certa altura, o Homem, para melhor se adaptar, desenvolve inconscientemente rotinas. Essas rotinas são o conjunto de gestos e de interpretações desses gestos que o ser humano executa para melhor se reconhecer e se estabelecer no contexto social, temporal e geográfico, dando origem, posteriormente, às instituições (como hoje as conhecemos).
Contudo, visto que as traições permanecem presentes na sociedade ocidental (pelo menos), são pejorativamente consideradas. E o que é pejorativo, o ser humano, normalmente, pensa em evitar (logicamente considerando): serão as traições, então, moralmente evitáveis ou um filho legítimo dessa “plasticidade humana”?