Docas de Nova York: A Frieza do Cotidiano
Os personagens principais no quarto de hotel acima do saloon.
Docas de Nova York é um filme de 1928, dirigido por Josef von Sternberg, que conta a história de um casal composto por um marinheiro (Bill) e uma prostituta suicida (Mae). O interessante é a forma fria e grosseira como todo o longa é levado. Não há passagens melodramáticas, há só passagens dramáticas; não há o beijo do herói na donzela perdida, há o adiamento eterno deste momento – ele não deve chegar.
O saloon perto das docas, onde a sujeira, a dança, as brigas e a bebedeira são partes estruturais, pode ser considerado como o cenário principal do filme, que mostra, também, com que perspectiva ele vai seguir – com certeza não será um melodrama inspirador. Diga-se de passagem, o filme todo se passa em poucos cenários - a sujeira, a frieza e a impossibilidade de um amor romântico é o que liga todos.
Poster do filme "Docas de Nova York".
A primeira grande cena do filme ocorre fora do saloon, quando Bill, ao ver Mae tentar se matar, a salva e, na primeira cena digna de um beijo, este beijo não acontece! O interessante da cena é o fato de não haver demonstração de contrato carnal (em 1928 um beijo não é só um beijo, quando colocado na tela de um cinema em uma cena onde só há foco para o casal). É o distanciamento que toma conta de boa parte do filme que parece dar significado ao personagem de Bill.
Após o salvamento.
Na verdade, é até non-sense pensar em um beijo naquela situação – o ambiente ajuda, mas... Se for para firmar um contrato amoroso, as características de ambos os personagens freiam este destino. É sociologicamente improvável.
Como um marinheiro grosso, inconsequente, que tem como objetivo o gozo imediato para compensação de um trabalho duro e contínuo no mar, pode conseguir de uma maneira lógica e fluida ter um amor romântico com uma prostituta linda, porém pobre, quase sem roupas e envergonhada de sua vida? A ligação de ambos está no fato de serem marginais.
Betty Compson como a prostituta Mae.
Em diversos momentos ambos explicitam que não são dignos de uma vida comum e “boa”. “Que tipo de homem se casaria comigo?”, ela pergunta - “Que tipo de mulher se casaria comigo?”, ele pergunta. A pergunta é a mesma e em comparação, neste ponto, eles são iguais. São dois marginais.
O casal menos provável do mundo.
O casamento dos dois, feito dentro do saloon, em clima de brincadeira ridícula, já transmite como não há lugar para amor no mundo das docas de Nova York – o amor é para livros e filmes, a realidade é cruel. Tão cruel quanto o dinheiro que Hynm Book Harry, a autoridade religiosa, aceita para legitimar o casamento (mas o rejeita no primeiro momento, em frente às outras pessoas no saloon, para não sujar sua imagem).
No dia após o casamento (o filme se passa em dois dias), quando Bill precisa voltar para seu trabalho no mar, o clima volta à decepção: Mae percebe que seus momentos juntos foram só diversão – da mesma maneira que Bill conta ao seu chefe, após batê-lo na noite anterior: “Bill, presumo que você esqueceu do que aconteceu na noite passada”, pergunta o chefe levemente inconformado - “Estava me divertindo, você nunca foi jovem?”, diz o rapaz naturalmente.
George Bancroft como o marinheiro Bill Roberts.
O ponto de inflexão é a volta do marinheiro para a cidade – ele percebe que não foi só uma diversão, percebe que teve significado para ela e que ela também teve significado para ele. Percebe que o mundo pode ser mais do que o gozo imediato para compensação de uma temporada de trabalho árduo. Mas será que essa inflexão é, de alguma maneira, revolucionária? Ela, eu acredito, é a ultima maneira de Sternberg captar o público.
É obvio que seu filme é recheado de expressões faciais que fazem do som algo irrelevante, é óbvio que os cenários repetitivos e os temas repetitivos demarcam uma esfera de ação e de sensação para os espectadores em relação ao filme, mas é óbvio que a chave de ouro hollywoodiana é o realinhamento com a conduta esperada – o amor romântico triunfa. Talvez este ponto seja o decisivo para fazer do filme mais um ótimo filme da esfera cultural de Hollywood.
Olga Baclanova como Lou, esposa de Bill.
Digo, é esta cena que fecha, completa o longa – completa todas as características esperadas por um público da década de 20 nos Estados Unidos.
Depois da volta para a cidade e de um segundo sacrífico que tem função de provar o amor dele por Mae, a frieza retorna e a história dos dois é passada – é parte de um cotidiano maior. O amor, então, não é especial, é cotidiano. Especial é só uma maneira de focar o amor, mas este foco desconsidera a grandeza da realidade – e sua frieza.
Ou seja, após a anestesia provocada pela volta do marinheiro à terra firme, Sternberg afirma que a história de cada um está entre a história de cada outro. Que tudo não passa de um cotidiano, que não somos especiais, coisa valiosa para nossa cultura narcísica atual.
Se olharmos mais devagar, perceberemos que Bill é o sujeito líquido moderno, que Bill é como que uma previsão do futuro, um sujeito imediato e gozador. Mas, ao contrário do filme, na atualidade não há este “retorno à vida segura e fixa” empreendida pelo marinheiro ao sair do barco e voltar nadando para sua amada. Na verdade, esta opção, de certa forma, nem existe.
Abaixo o trailer do filme, que pode ser assistido completo no Viooz.