A rua não canta a uma só voz
© Amanda Scharr, Curitiba.
Os últimos meses foram de povo na rua, não para seguir na trilha do trabalho e casa e muito menos para obedecer ao cotidiano engessado das cidades. O que ocorreu foi uma multiplicação de causas rabiscadas em cartolinas. Se expôs (para quem ainda não “conhecia”) a violência policial acompanhada pelo determinismo do Estado, se viu a indulgência do flagrante despreparo do sistema político, e a apropriação e o oportunismo de todos os lados de onde se centraliza o poder.
Entre tantos debates e reflexões, essa movimentação trouxe também uma “falha”, ou melhor, um vício de comportamento para momentos como esses. Historicamente, esses levantes trazem em sua formação a interação cultural e sua contribuição para o desenvolvimento e popularização da causa. O levante de junho resultou, por exemplo, na publicação de Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos, organizado pelo coletivo Os Vândalos . E também exposições fotográficas, como a Curitiba Protesta.
Uma das expressões culturais que uniram diversas vezes causas, anexando política e envolvimento artístico, foi a música. Mas a produção musical resultante do mês de junho se diversificou (como os temas debatidos nos protestos) e também veio acompanhada (novamente) de um oportunismo, onde pipocaram pelo país tentativas de caracterização musical.
© Amanda Scharr, Curitiba.
O termo “música de protesto” já classificou diferentes estilos que musicaram questões sociais e exemplificaram momentos históricos. Um dos grandes exemplos é a música Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, que desafiou em 1968 a repressão da ditadura, se popularizou rapidamente e incluiu Vandré na história da música brasileira e na lista de censurados da época. No livro A Canção no Tempo, Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello relatam que o general Luís de França Oliveira, secretário de Segurança da Guanabara, justificou a censura da canção, dizendo que: “Pra não dizer que não falei de flores tem letra subversiva e sua cadência é do tipo de Mao-Tsé-Tung”.
Mas o novo momento mostra outra realidade sobre a música que artistas e mídia procuram, e ouve-se uma pulverização de causas e rostos, que buscam incessantemente e de uma maneira simplória um ícone e/ou símbolo para os últimos acontecimentos. Assim, após alguns meses já se podem observar as milhares de canções que estão aparecendo na web, tentando “traduzir as vozes das ruas”. A intenção era criar, novamente, um “hino” e reproduzi-lo de forma uníssona em cada canto do Brasil. Dando luz ao momento, criando outro “ícone da MPB”, e enlaçando a cultura para auxiliar futuramente professores de história em aulas interdisciplinares. Mas dificilmente isso acontecerá novamente. Se trata de uma tentativa simplória, e de uma leitura equivocada do que é e do que se tornou o movimento nacional.
A multiplicidade do movimento é infinita e as ruas não irão reproduzir um padrão. Politicamente falando, e muito menos se tratando de nossa cena musical atual. Hoje não existe um festival da canção que possa gerenciar as “canções escolhidas”, como na época da ditadura. E muito menos uma indústria fonográfica que administra artistas e criações. Apesar de os compositores dessa época terem uma caneta político-poética muito significativa, ainda se utilizavam da influência das gravadoras.
Esse é um dos fatores importantes para compreender o desenlace com a criação de uma música de protesto para as manifestações de junho. A indústria da música se desestabilizou, não gera e não é pauta para a maioria do público, e a web fortificou ainda mais essa relação trazendo a independência aos artistas e para os ouvintes. Ou seja, a música ganhou em sua diversidade de distribuição através da legitimidade que o próprio público deu, e não é um jogo de aceites – o jabá – entre as indústrias parceiras, como eram a da música e da comunicação.
O farto cardápio das canções jogadas na rede demonstra que não será a poesia musicada de um samba cadenciado de Buarque, ou uma guarânia “praiana” de Vandré, que darão o tom para quem pesquisar futuramente esse momento histórico brasileiro.
A canção de protesto é um rap feito por índios da etnia Guarani Kaiowá (Brô MC’s), é um samba-exaltação feito no Acre, é um tecnobrega gaúcho, é um bugiu composto por baianos, é um funk paranaense, é uma moda de viola de autores capixabas, é um rasgueado de Roraima, é um afoxé feito em Guarruchos... Quem não entender a diversidade e o momento da música independente brasileira, não irá entender esse movimento conduzido pela juventude brasileira.
Ouça abaixo algumas das canções (a canção morreu?) disponíveis na web, e nos auxilie enviando alguma dica de música referente aos protestos no Brasil.
Povo Novo – Tom Zé
Isso é Brasil – MC Garden
Vinagre – Iuska
O Gigante – Latino
As coisas não caem do céu - Leoni
Nós somos o Brasil – Lil Black
Chega – Seu Jorge
Tá na hora de acordar – Jão Jonez
Reinação – Apanhador Só
Cinelândia - Amora Pêra, Daniel Gonzaga, Pedro Rocha