Celebrando stellan skarsgard
River (2015) é uma minissérie inglesa cuja premissa é bastante estapafúrdia, mas o desenvolvimento, atuações e a familiaridade com certa convenção suspendem nossa descrença e em poucos minutos do primeiro dos seis episódios somos irremediavelmente engolfados pelo rio de emoções, que consta do catálogo da Netflix.
Centenas de séries e filmes apresentando uma dupla de policiais cujas personalidades nada têm a ver ou detetives birutas - que em ambos os casos, desmentem a existência/eficiência dos psicólogos das corporações – acabaram convencionalizando esses dados. Aceitamos por conveniência ficcional, afinal, se queremos conflito, há que fazer concessões. River pede que aceitemos a permanência na polícia inglesa de um inspetor louco de pedra, que desde criança tem visões psicóticas, além de conversar e interagir com elas, podendo tornar-se violento nesse intercâmbio, atirando cadeiras ou esmurrando paredes.
Esse é John River, o imigrando sueco – os britânicos estavam obcecados por Nordic Noir – já no fim da meia-idade, que vemos na cena inicial conversando sobre Abba, Roxette e A-Ha (“eles são noruegueses”, ri) com sua parceira Stevie. Não demora dez minutos para percebermos que ele falava sozinho; sua companheira fora assassinada há duas semanas, logo depois de ambos saírem de um restaurante, onde River não tivera coragem de revelar-lhe algo importante.
Em princípio, a trama de River é a busca pelo assassino de Stevie, mas o roteiro de Abi Morgan é muito mais que isso, transformando a minissérie num dos grandes programas de TV daquele ano.
John River é atormentado por diversas manifestações, como ele as denomina; desde vítimas a personagens históricos como um serial killer vitoriano, que proporciona alguns dos momentos mais bizarros. Sabiamente evitando o fácil reino da sobrenaturalidade, o roteiro usa essas aparições como projeções variadas da psique do Inspetor-Detetive. A manifestação principal é obviamente Stevie, que conhecemos exclusivamente pelo filtro da memória/imaginação de River, mas a qual entendemos, passamos a gostar e sentimos pena.
Outro trunfo é que todas as personagens têm alguma profundidade e algumas secundárias crescem muito. Os diálogos são certeiros e finalmente criaram detetive inteligente e atormentado, que mora num apartamento transado, mas que não ouve ópera ou jazz: River e Stevie ouvem/iam disco music meio trash, tipo Tina Charles.
Um dos pontos mais cruciais tem de ser o intérprete de John River. Em tese, não deveria ser fácil empatizar com um senhor amalucado e tão estranho. A personagem é suculenta e uma das mais memoráveis da TV contemporânea, mas poderia facilmente escorregar para o exagero ou caricatura. Stellan Skarsgård faz rir, chorar, passar raiva, torcer e até querer confortar. O filho mais velho dos atores Paul Bettany e Jennifer Connelly chama-se Stellan em homenagem ao sueco. Dá pra entender o porquê de tamanha tietagem. Morgan afirmou que deu tanto trabalho escrever o policial, que dificilmente faria outro. Realmente, não compensa uma segunda temporada. Dá muita vontade de ver mais John River, mas será conveniente arriscar ofuscar o brilho dessa meia dúzia de capítulos? Vale mais rever River de vez em quando.
O norueguês En Ganske Snill Mann (2010), conhecido em português como Um Homem Um Tanto Gentil, é daqueles filmes que cozinham lentamente em banho-maria e apresentam, sem alarde, algum grande personagem ou majestosa atuação.
Ulrik é senhor de meia-idade saindo da cadeia após doze anos de haver matado o amante da esposa. Reencontrando sua velha gangue – reduzida, decrépita e patética – o mecânico tenta se reaproximar do filho e deixa seus antigos comparsas convencerem-no a procurar vingança. Nesse ínterim, envolve-se com personagens tão comuns e classe trabalhadora quanto ele. Nada daquela Noruega idealizada como paraíso de afluência. Não há miséria, mas a galeria de personagens é de gente pobre, trambiqueira, francamente bizarra, violenta ou perdedora.
Ulrik tem que se haver com a azeda e repulsiva senhoria, que lhe serve jantar, assiste a programas de auditório polaco com ele, para, de repente, baixar a calcinha e “comê-lo”. Também com a colega de trabalho, mais jovem e que tem um ex-marido violento. E esses são apenas dois exemplos.
Ulrik é caladão e algo gentil, que se não sabe direito porque matou o rival, demonstra ter potencial demolidor, como quando intervém junto ao ex-esposo machão da companheira de serviço. Por outro lado, é enternecedora a cena onde ri até as lagrimas apenas por ver o filho e a noiva deste também rindo.
Ai estão dois trunfos do roteiro: personagens multifacetadas e uma interpretação impecável do sueco Stellan Skarsgård. Demora um pouco para o espectador começar a se importar com esse homem e seu rabo-de-cavalo, mas, sem fogos de artifício, o ator nos coloca do lado da personagem e torcemos para que tudo dê certo pra ele.
Polvilhado com humor escandinavo, En Ganske Snill Mann contém detalhes que enriquecem o roteiro: a canção dos Pretenders que toca na oficina vem do álbum Learning to Crawl, que se traduz como aprendendo a engatinhar, precisamente o que Ulrik fazia.
Apostando no conceito de menos como mais e na mistura leve de drama, comédia e policial meio noir, a produção é entretenimento mais do que decente, ainda que discreta.
E como a gente curte o sorriso de Ulrik, quando chega a primavera!
Aberdeen (2000), coprodução anglo-norueguesa, é road movie, onde pai e filha estranhados aparam arestas ao se conhecerem melhor. Kaisa é focada na carreira de sucesso e não tem contato com pai ou mãe, a qual vive na escocesa Aberdeen. Morrendo de câncer, a mulher liga para a filha, pedindo-lhe que vá a Oslo buscar o pai para que possa se despedir. Kaisa reluta, mas aceita buscar o alcoólatra. De porre no portão de embarque, Tom não pode voar, então, Kaisa e ele têm que fazer o trajeto Oslo-Aberdeen de barco/carro. Usar a forma do road movie permitiu ao roteiro dar o tempo necessário para as personagens se descobrirem.
Não isento de clichês e forçações de barra – achar um caminhoneiro que entenda sua situação como se sempre tivesse te conhecido é só mesmo em filme – Aberdeen apresenta relação pai e filha onde nenhum é santo ou diabo. A dependência química de Tom encontra contraponto na de Kaisa, que no começo parece assertiva, mas não é. Tom também não é o adulto que aparenta; ele foge de responsabilidades.
Aberdeen não é memorável e custa para nos import armos um pouco com as personagens, mas as atuações de Stellan e Lena Headey compensam parte da “frieza” para quem está acostumado com a emotividade extorquida a fórceps dos filmes de Hollywood. Importa mais constatar um relacionamento possível do que construir um perfeito e idealizado. Por isso, a produção merece ser conferida.