Cinco poemas de Dora Incontri
1. De onde você vem?
Sou paulistana, 58 anos, e moro há 20 anos em Bragança Paulista. Sou jornalista, mestre, doutora e pós-doutorada em educação pela USP, escritora, e coordeno um projeto de educação alternativa: Universidade Livre Pampédia.
2. Carlos Drummond de Andrade disse que “há vários motivos para odiar uma pessoa, e um só para amá-la; este prevalece.” Quem você ama ler? .Quais são as suas referências literárias?
Na literatura, meus preferidos são Guimarães Rosa, gênio absoluto, e outros gênios Machado de Assis e Tolstoi. Na poesia, Cecília Meirelles, Fernando Pessoa. Na filosofia, Platão. Na espiritualidade, os Evangelhos, Kardec.
3. Já lançou algum livro? Participou de antologias?
Tenho mais de 40 livros publicados: entre poesia, obras sobre educação, espiritualidade, infanto-juvenis, didáticos, filosofia. E sou sócia-proprietária da Editora Comenius.
4. Federico Lorca disse que "todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas." E quando foi que você tocou esse mistério?
Desde antes de aprender a ler, minha mãe já lia para mim e havia poesias infantis que me falavam. Lembro-me aos 6 anos recitando um poema para minha primeira professora. Quis ser poeta e escritora aos 11 e ganhei minha primeira máquina de escrever. Aos 13, já fazia poesias e publiquei alguns versos num jornal de bairro.
5. “Se tenho de sonhar, porque não sonhar os meus próprios sonhos?" (Fernando Pessoa). E quais são os seus sonhos?
Tenho tantos, cito três: ajudar a mudar a educação, tornando-a mais amorosa, mais ativa, e com uma espiritualidade plural; semear poesia aos quatro ventos; viver num mundo mais fraterno e mais justo.
Ciclos
- O tempo morre e renasce o tempo inteiro
- Refaz-se o ano em janeiro
- Propondo a novidade de um roteiro.
- Da vida, o tempo extrai a morte,
- Da morte, o tempo gera vida.
- Alterna-se o tempo em toda sorte
- De chegada e de ida, de vinda e partida...
- O tempo é mestre dos destinos
- Com ele somos sempre peregrinos,
- Carregando amores e saudade
- Em busca de uma eternidade!
(Do livro A HORA DE DORA, Editora Comenius, 2014)
O bem-te-vi
- O bem-te-vi me fala da janela,
- Canta com voz amarela
- Na tarde de sol que se esvai...
- E um ressaibo de saudades me cai
- Na alma de sentinela.
- Mãe, infância, jardins,
- Quintais e tardes sutis
- São névoas da cor dos jasmins.
- Tudo passa e tudo fica
- Porque a vida se transmuda
- Com perdas, dores e fins.
- Mas também se retifica
- Pois se a matéria se muda,
- A alma é sempre mais rica
- E o amor é sempre sem fim.
(Do livro A HORA DE DORA, Editora Comenius, 2014)
A salvação da poesia
- Depois de uma guerra
- Sobra poesia?
- E enquanto se atura
- Uma pandemia?
- Sobrevive a poesia?
- Mas em tempos de paz suposta
- De normalidade torta
- Onde se esconde a poesia
- No meio da noite fria
- Com o irmão da rua?
- Como se canta a lua
- Com a chacina na favela?
- A poesia, onde se esgueira
- Ante a criança abusada
- Ante o pobre sem beira
- E a mulher espancada?
- Onde se acha a poesia
- Quando a natureza anda abatida?
- A poesia corre enlouquecida
- Ávida de flores e de delicadezas.
- A poesia grita proezas
- Para reclamar justiça e humanidade,
- Para ensaiar beleza e sanidade!
- Apesar dos pesares
- A poesia persiste
- Avista estrelas
- Na noite triste.
- Abre-se em mares
- De pranto reparador.
- A poesia pode gemer de dor
- Mas ainda nos salva do destempero
- Abranda o desespero
- E nos faz tecer
- A cada dia, um caminho
- De certo alvorecer...
Votos de mulher
- Não quero flores
- Porque elas ainda têm sangue.
- Não quero amores
- Que me deixem exangue.
- Não quero migalha
- De direito torto.
- Quero igual salário
- A quem, como eu,
- Em dobro trabalha.
- Não quero assédio
- Nem feminicídio.
- Nem olhar promíscuo
- De homem médio.
- Não quero o tédio
- De outro ego arisco
- Sobre minha dor,
- Sem nenhum remédio.
- Quero-me inteira,
- Gorda, magra ou virgem,
- Ou puta alvissareira,
- Casada, amante ou solteira,
- Ou casta monja à beira.
- Quero-me alma prazenteira
- E corpo ao meu gosto,
- Sem desgosto imposto
- Sem forma embusteira.
- Quero-me mãe, irmã, companheira,
- Às vezes terna, às vezes guerreira,
- Resistência e não mais
- A boneca faceira,
- Que se faz brincadeira
- De um homem capataz.
- Irmãs, nossa é a luta
- Que não disputa
- O poder do poder
- O poder de ter.
- Nossa é a luta
- De poder ser.
- Irmãs, nossa é a labuta
- Por mais escuta
- De qualquer padecer.
- Seja-nos esta vida enxuta
- De lágrima e sangue.
- E jamais se faça curta
- Pela força bruta
- De uma insana gangue.
- Irmãos, aqui estamos
- Irmãs e mães, amores e filhas...
- Não queremos guerrilhas
- Nem fugirmos todas às ilhas
- Em que as Safos se escondem.
- Reine entre nós serena amizade,
- Parceria, respeito e igualdade.
- Nenhuma voz jamais seja calada.
- Só isso. E mais nada.
Poema do mar revolto
- Pra comandar o destino
- É preciso se entregar!
- “Não sou eu quem me navega,
- Quem me navega é o mar!”
- Entregar-se em coração
- De doçura de criança,
- Coragem desbravadora
- Com serena confiança.
- Entregar-se, pois no mar
- É Deus que governa o vento
- E o leme nas nossas mãos
- Obedece ao seu sustento!
- Entregar-se com unção
- Avistando o porto ao longe
- Ainda que atrás das brumas
- A terra de nós se esconde!
- Então, num dia de azul
- Vem a praia iluminada
- E vemos: ventos e mares
- Foram assim quase um nada!
(Do livro LUAS VERMELHAS – POEMAS DE OUTONO, Editora Comenius, 2020)