"Último tango em Paris": um brinde ao amour fou
Considerado, ainda hoje, por muitos, como um filme pornográfico, a obra polêmica de Bertolucci joga luz sobre o amour fou, realizando uma bela metáfora, entre o amor desmedido e as amarras de uma sociedade que nega o que não pode entender.
"Último tango em Paris" mostra simbolicamente que quem dança fora do ritmo e propõe passos novos é convidado a se retirar do salão. Por meio da cena em que os protagonistas dançam desajeitadamente no meio de casais robóticos, que disputam um concurso de tango, vemos nitidamente como o automatismo social quebrado é rapidamente e veementemente punido.
Por meio do erotismo e do intimismo, as marcas de Bertolucci, o diretor analisa as escassas possibilidades que o mundo oferece. Jeanne e Paul se refugiam do mundo externo num apartamento quase vazio, mais uma bela metáfora de suas próprias vidas. O colchão no centro da sala nos revela simbolicamente o poder e a centralidade do amor erótico na vida das personagens e da própria sociedade.
Muito mais que um filme sensual, "Último tango em Paris" é uma feroz crítica à sociedade e aos seus mecanismos e jogos de poder; é um manifesto em prol da espontaneidade e da liberdade. O contraponto do romance entre Jeanne e Paul é o noivado da co-protagonista com um jovem cineasta afetado, que teatraliza o amor ao invés de vivê-lo. A figura do jovem artista nos remete ao cinema francês ( o ator escolhido para o papel atuou em muitas obras de Truffaut, importante nome da Nouvelle Vague francesa) e à constante preocupação em racionalizar o irracional; nomear o que não precisa de nome.
Falando em nomes, no princípio do romance clandestino, o personagem de Marlo Brando não quer saber o nome da jovem amante nem dizer o seu. Os nomes aparecem nesta obra como um grilhão que nos prende a toda uma referência social. Junto com o nome vem a família, as máscaras sociais, a necessidade de respeitabilidade, o comodismo e o medo de sair da zona de conforto. Junto com o nome vem o automatismo social, o oposto radical do amour fou e a impossibilidade de ser livre. A liberdade aqui é quase o sinônimo de felicidade.
Na famosa "cena da manteiga", em que é sugerido um ato de sodomia, o personagem de Brando faz um febril discurso, afirmando que as crianças são torturadas até aprenderem a mentir. Esta frase por si só merece muitos momentos de reflexão, provavelmente, uma releitura histérica, desesperada e febril do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço do século 18. Rousseau afirmava que o homem era bom por natureza, mas a sociedade o corrompia.
Porém, "Último tango em Paris" tem outros méritos. Todos os elementos estéticos conspiram para a aura melancólica e angustiante do filme, incluindo a trilha sonora de Gato Barbieri, a atuação de Brando, o intimismo da fotografia que se expressa por meio de movimentos rodopiantes e uma coloração avermelhada em algumas cenas. O vermelho surge quase como um grito estrangulado que se liberta no apartamento refugiado; como o grito que o personagem de Brando nos dá na primeira sequência do filme.
Um filme verdadeiramente romântico, pois põe em xeque os clichês amorosos, para depois retomá-los dentro de suas limitações. Paul tenta viver um amor anticonvencional, mas o amor nos conduz inevitavelmente às obviedades. Paul se curva diante do trivial e é aí que temos uma grande surpresa; a grande bofetada de Bertolucci em nossos rostos politicamente corretos. Um detalhe gigantesco que merece atenção é Jeanne ser filha de um militar. Creio que muitas de suas atitudes têm profunda relação simbólica com este fato. Vale a pena conferir !