Cinema Paradiso: a metalinguagem em estado emotivo
É muito difícil não se emocionar com Cinema Paradiso. Ele mexe profundamente com o lado infantil que escondemos dentro de nós, o traz à tona e nos faz chorar como criancinhas diante de um conto de fadas. Porém, Cinema Paradiso está muito longe de ser uma história da carochinha. Com uma linguagem extremamente simples, o filme é uma comovente e inesquecível homenagem ao cinema e a todos os seus amantes. É também um belo exemplo de melodrama inteligente.
Normalmente filmes que apelam muito para as emoções e o choro fácil tendem a ser menos significativos ideologicamente falando e quase nada ou nada acrescentam às nossas estruturas psíquicas pois tudo se resume à catarse, sem nenhum tipo de elaboração sentimental mais sofisticada. Porém, Cinema Paradiso, apesar do caráter melodramático, consegue tocar em botões importantes da psique humana.
Lembra com saudosismo o tempo em que as salas de projeção eram local privilegiado de encontro entre as pessoas, transformando o ato de ir ao cinema num significativo evento social. Mais do que isso. O cinema era um agregador social e havia toda uma magia em assistir um filme já que diferentemente de hoje não existia a possibilidade de assistir filmes em casa no horário que bem entendemos. Por se tratar do local único para se ver um filme , o ato de ir ao cinema era quase sagrado como uma missa, mas muito mais lúdico e espontâneo. Ali, as pessoas riam, choravam, faziam sexo, repensavam suas vidas, os meninos fumavam e descobriam sua sexualidade, num movimento oposto ao vivido na escola que era repressora. O cinema era um escape da vida real e ao mesmo tempo uma descoberta profunda da nossas verdades. O local em si era um show à parte, uma espécie de prolongamento do próprio filme.
Depois que Cinema Paradiso pega fogo, a sala de projeção sai das mãos do padre da cidade e vai para as de um homem simples que acabou de ganhar na loteria e tem condições financeiras de reconstruí-lo. O padre proibia todas as cenas de beijo por considera-las imorais. Um toque cômico e histórico no filme. Quando o cinema passa a ser dirigido pelo napolitano os beijos são permitidos e o cinema passa a se chamar O novo Cinema Paradiso. O fogo traz muitas simbologias importantes, entre elas a destruição e o renascimento. Basta pensarmos na Fênix, figura mitológica que ressurge das cinzas. O fogo que destruiu o cinema e cegou o projecionista Alfredo é o mesmo fogo que dará origem a um cinema mais liberal e a uma chance de Totó ficar mais perto do mundo cinematográfico.
Cinema Paradiso tem muitos temas paralelos: a amizade, a descoberta do amor, a importância de seguirmos a nossa vocação, a inutilidade de tentarmos esquecer ou superar alguns fatos que determinam a nossa vida.
Totó e Elena: um dos romances mais ingênuos do cinema
De um lado, temos Totó que se consagrou como cineasta, mas que nunca se realizou afetivamente, depois de perder seu amor de juventude.
Viagens em cinema sempre trazem a simbologia de uma vida nova, de um longo caminho a se seguir
Um Totó pleno e arruinado ao mesmo tempo
Do outro, temos Alfredo, o projecionista de o Cinema Paradiso, um homem simples e sem instrução, que descobrimos ao final ter uma alma de cineasta, o que ressalta a dolorosa verdade de que muitas pessoas não têm a menor possibilidade de expressarem o que são e o que sentem. São complemente esmagadas pela vida e pelas circunstâncias, restando a elas apenas sobreviver e de vez em quando sonhar.
Alfredo vive o gênio obscuro da sociedade. É um arquétipo de todos que têm sua voz calada pelas circunstâncias
Como pano de fundo temos a Segunda Guerra Mundial na primeira fase do filme, quando Toto é ainda um menino. Nenhuma cena bélica é mostrada, mas sentimos o peso e o horror da guerra e o que ela faz com as pessoas , produzindo órfãos e viúvas, por meio da mãe de Totó, um arquétipo meio estereotipado de uma típica mama italiana , extremamente carinhosa e protetora e ao mesmo tempo sufocante e irritadiça. O filme mostra o horror da guerra por meio do sofrimento dos civis, das mulheres desamparadas e das crianças que crescem num mundo arruinado.
Vale ressaltar que este filme apresenta duas versões: a do cinema e a do diretor. A premiada com Oscar de melhor filme estrangeiro é a do cinema , 40 minutos mais curta. A versão do diretor traz muitos fatos novos que mudam o rumo do filme. O meu artigo se refere à versão do cinema.
Vale destaque a cena final, que é antológica: uma espécie de síntese do filme sonorizada magistralmente pela música O tema do amor, de Andrea Morricone. A trilha sonora realizada por Enio Morricone mais O tema do amor formam quase que um filme à parte, estabelecendo uma relação simbiótica entre narrativa imagética e trilha sonora. Extremamente afetivo , sensível e comovente! Um filme essencial para qualquer cinéfilo.