A desculpa do cheiro de papel
Tecnicamente um livro é apenas um agrupamento de papéis unidos por um dos lados. A definição literal da palavra termina mais ou menos por aí. Apesar disso, todos sabemos que existe também um significado mais abstrato atribuído ao termo, que é o conteúdo dentro dessas páginas. A Epopeia de Gilgamesh é frequentemente apontada como um dos primeiros livros da história, apesar de ter sido escrita em argila e com bambus. Teoricamente, chamar de livro está errado, mas é fácil entender o que as pessoas que falam isso querem dizer. Afinal, mesmo escrito sobre pedra, pergaminho, papiro ou folhas A4 Chamequinho, o que interessa ao leitor comum é o conteúdo, certo?
Eu sempre achei que sim.
As histórias escritas tiveram vários lares durante a história. Os sumérios escreviam sobre argila e os egípcios faziam rolos verticais enormes, semelhantes aos que ficaram guardados nas prateleiras de Alexandria muitos anos depois. Eventualmente os europeus começaram a escrever em pergaminhos unidos pela lateral, formato chamado "codex", que a automatização das impressões gráficas transformou no padrão ocidental, evoluindo para o livro moderno. Por centenas de anos não tivemos grandes evoluções neste formato até que os e-books começaram a chegar ao mercado editorial, e esse é o motivo de toda essa laboriosa introdução.
Há um debate frequente entre leitores, sobre livros impressos versus livros digitais, e acredito que qualquer pessoa ponderada sabe que a única resposta possível para essa discussão é: cada um tem suas vantagens, as pessoas são livres para escolher o formato que mais lhes convém. Pessoalmente, não me importo com a plataforma onde uma história se encontra, e inclusive já tive a ótima experiência de escrever uma obra de ficção feita especialmente para ser lida online, em navegador ou aplicativo. Há, porém, um tipo de pessoa que parece se considerar o PURISTA dos livros, que do alto de seu conhecimento literário bate no peito e afirma que "livro digital não é livro" e solta frases de efeito como "Nada é melhor que sentir aquele cheiro de livro, e no e-book não tem isso". Chegamos nesse ponto, parece que as pessoas estão lendo com o nariz.
Cada indivíduo é bem-vindo a escolher suas leituras pelos critérios que achar melhor e todos temos nossas preferências, mas recusar-se a ler um livro digital pela ausência do "cheiro de papel" ou do "som das páginas" não é nada além de uma desculpa para continuar ignorante. Aliás, por muitos anos a igreja católica fez contrapropaganda aos livros de papel, afirmando a superioridade do pergaminho, e não tenho dúvida que muitas pessoas se recusavam a ler livros de papel por razões semelhantes. Se o melhor livro da sua vida só estivesse disponível em versão digital, quer dizer que você recusaria a leitura? E digamos que daqui a dez anos esteja conversando com alguém que leu o mesmo livro, você vai comentar sobre o cheiro que sentiu ao ler o cápitulo três e o barulho que vinha lá de fora quando chegou na metade? Arrisco dizer que não. O que vai importar é o conteúdo, e ainda bem.
Há várias boas razões para preferir o livro impresso, há pessoas que têm dores de cabeça pela luminosidade da tela, por exemplo (apesar de os e-readers modernos terem resolvido isso com as telas foscas). Da mesma maneira, havia vantagens de usar rolos em vez de livros, ou pergaminho em vez de papel (é só comparar o estado de conservação de um pergaminho de 500 anos e um papel de 50). Os e-books em geral são mais baratos, mais fáceis de transportar e têm impacto ambiental menor. Os livros impressos não correm risco de esgotar bateria no meio da leitura e podem adornar uma estante, para os que valorizam esse tipo de coisa. Mas por favor, a indústria literária suplica, não venha prestar o desserviço de tentar diminuir todo um novo setor do mercado editorial sob pretextos tão, tão pobres.
Você não tem que gostar, mas ao menos saiba desgostar pelos motivos certos.