Nós, as borboletas, e os escafandros da alma
Olhe em volta: há escafandros por toda parte. E quando digo escafandro, não faço alusão ao sentido literal da palavra, remetendo-me à vestimenta utilizada por mergulhadores. Não. Vou além. Quero falar-te sobre os pequenos dissabores diários experimentados por tantos de nós; sobre as palavras de desafeto que nos são, frequentemente, desferidas; sobre batalhas sangrentas as quais travamos dentro de nossos silêncios.
Quantas não foram as vezes em que nos sentimos, de alguma forma, aprisionados? E não me refiro ao longo espaço de tempo transcorrido desde o dia em que nascemos até hoje: indago-o quanto às últimas semanas, dias ou, até mesmo, horas. Quero dizer, já se permitiu refletir a respeito de sua liberdade? Ou se, de fato, nos permitimos usufruir de nosso livre arbítrio?
Jean-Dominique Bauby era um homem bem-sucedido que acabou por sofrer um súbito acidente vascular cerebral, infortúnio este que lhe trouxe uma triste e rara doença denominada síndrome do encarceramento, deixando-o completamente paralisado e capaz de movimentar apenas seu olho esquerdo.
O filme Le Scaphandre et le Papillon (traduzido como “O Escafandro e a Borboleta”), lançado em 2007 e dirigido por Julian Schnabel, fruto de uma adaptação do livro de mesmo nome, narra a vida de Jean-Dominique desde a tragédia, descrevendo a maneira como este superou, inacreditavelmente, as limitações trazidas pela síndrome: Jean, com uma técnica bastante curiosa de sinais, a qual consistia em soletrar palavras por meio de simples piscadas de olho, escreveu um livro, com o auxílio de uma enfermeira, sobre a experiência de sentir-se preso dentro de seu próprio corpo, terminando-o dias antes de falecer.
E nós? Como ficamos enquanto borboletas igualmente presas em nossos escafandros? Lanço mão da metáfora para me fazer entender: cada vez em que somos tolhidos de nosso direito de escolher, há uma prisão limitando nosso bater de asas. No simples fato de nos guiarmos pura e simplesmente pelas perspectivas e valores de outros em detrimento de nossas próprias convicções, deixamo-nos dominar por uma pesada estrutura de ferro que nos paralisa os impulsos, as paixões. Nos momentos em que nos permitimos abater pelas opiniões alheias, acovardando-nos diante de olhos os quais preocupam-se apenas em nos julgar incansavelmente, nosso voo é cruelmente interrompido, e restamos emperrados em uma redoma.
Pode ser que, felizmente, tenhamos o movimento de cada centímetro de nosso corpo, mas devemo-nos atentar às constantes agressões que nos tiram a dinâmica da alma. “O Escafandro e a Borboleta” e a emocionante história de superação com que esta obra-prima cinematográfica nos atinge as retinas vai muito além da trajetória de um homem acometido pela paraplegia: ela nos fala de transgressão de barreiras, sejam elas quais forem.
De certa forma, temos todos um Bauby dentro de nossos peitos: portanto, permita-se. À imagem e semelhança de um ser humano o qual teve a coragem de ignorar os efeitos funestos de uma doença que lhe tirou quase tudo que possuía, permita que a borboleta a qual reside em seu peito irrompa as balaustradas construídas pelo medo, pela covardia, pela dor e pelo trauma, partindo num voo livre e desprovido de amarras, rumo ao descobrimento e satisfação dos próprios anseios, vontades e motivações.
Se apenas um frágil olho esquerdo foi capaz de escrever uma história, nós, com nossos braços e peitos abertos, somos capazes de abraçar o mundo: o segredo reside em deixar de lado os escafandros.