Até o último pedaço: um encontro de Comedores Compulsivos Anônimos

Parte de um corredor comprido, a pequena sala, com cadeiras formando um meio círculo e, ao fundo, uma grande janela empoeirada, sem persianas, é a sede dos encontros do CCA (Comedores Compulsivos Anônimos), irmandade administrada pela Junta de Serviços Gerais de Comedores Compulsivos Anônimos do Brasil (JUNCCAB). Sentados uns em frente aos outros, encontravam-se sete pessoas que procuram ajuda e ajudam uns aos outros na recuperação da doença.
O único requisito para ser membro do CCA é o desejo de parar de comer compulsivamente e a irmandade não está vinculada a nenhuma organização, movimento político, ideologia ou doutrina religiosa. No site da irmandade, há perguntas as quais o possível Comedor Compulsivo pode fazer a si mesmo para saber se sofre, de fato, do transtorno. Glória, uma mulher de meia idade, de cabelos negros e curtos e de aproximadamente 80 quilos, foi a primeira a dar o depoimento, logo após sua leitura da primeira parte de um folheto, entregue a todos, que descreve a doença do comer compulsivo e apresenta os Doze Passos e as Doze Tradições, inspirados no programa dos Alcoólicos Anônimos. Com a voz triste, ela revela a dificuldade de as pessoas com quem convive entenderem o que é começar a comer e não conseguir parar. Segundo ela, “alguns alimentos são como uma verdadeira droga, mas as pessoas não conseguem enxergá-los como tal”. Gloria conta sobre os obstáculos enfrentados todos os dias diante de alimentos gordurosos e açucarados e dificuldade das pessoas de verem-na como um paciente, em tratamento. “Come só um pedacinho’ é uma frase que ouço sempre, mas quem a diz nunca entenderá como é ser como eu”, diz ela.
O próximo a falar, William, frequentador das reuniões há 11 anos, revela que, há pouco tempo, tivera uma recaída e engordara 30 quilos. “É uma luta diária e é nas reuniões do CCA que eu encontro alívio, conforto e motivação para continuar. Quando como compulsivamente, sinto vergonha do meu próprio corpo e isso é horrível”, confessa ele. William é obeso e já passou por várias oscilações de peso. É possível perceber que a grande maioria deles – com exceção de William – está em forma, o que contradiz a primeira impressão de que comedores compulsivos são obesos e necessariamente estão acima do peso. A doença se manifesta não somente na obesidade - por vezes evitada em razão de outros transtornos alimentares, como a bulimia -, mas também na ansiedade, frustração e perda do autocontrole.
Nos depoimentos de cada um, a rotina e o planejamento alimentar são citados como a parte mais difícil do tratamento e do controle da compulsão. Maria, de 30 anos e há dois dias em abstinência, explica que sempre evitou festas e comemorações, pela quantidade e oferta de alimentos. “Quando saio da ceia de Natal, é como se a ceia, na verdade, não saísse de mim. Eu continuo pensando nisso por dias”. Maria menciona que há alguns meses realiza atividades físicas regularmente e diz serem todos os dias uma luta, tanto em relação à doença e à busca pela abstinência da compulsão, quanto à manutenção do condicionamento físico. “Estou no quarto passo e, além dos exercícios físicos, criei maneiras próprias de comer: só como sentada e o ambiente deve estar tranquilo e iluminado”, revela ela. “Comer, para mim, exige concentração.”
Após a primeira rodada de leitura, ocorre a “dinâmica da Sétima Tradição”, na qual é passada uma sacola para receber doações. O CCA não aceita ajuda financeira externa, mas somente dos que se consideram membros. Isso evita qualquer dependência ou exposição do grupo, mantido pelos próprios membros e pela JUNCCAB. A doação de cada um é feita confidencialmente, não sendo revelados valores. Após a dinâmica, volta-se à leitura de um livro, distribuído para todos, que contém uma passagem para cada dia do ano. A leitura é acompanhada por novas declarações.
“Estou há dois anos em abstinência, mas houve um tempo em que a compulsão era incontrolável ao ponto de conseguir comer um quilo de queijo de uma vez só, fatia por fatia.”, relembra Jorge, o coordenador da reunião. Transpassando muito confiança e determinação, ele afirma: “Hoje, tenho autocontrole, mas cada dia é um novo dia. Houve uma época em que eu não podia ir a nenhuma festa de criança com o meu filho, era um martírio para mim”. Jorge é padrinho de alguns membros, por já ter completado os 12 passos. O sistema de apadrinhamento é um dos instrumentos utilizados pelo CCA, que são: um planejamento alimentar; o sistema de apadrinhamento; as reuniões; o uso do telefone; a literatura aprovada pelo CCA, entre livros e folhetos; o anonimato e o serviço - cuidar do local das reuniões, dar assistência à novos membros e transmitir a mensagem do grupo aos que necessitam.
Roberta frequenta há poucos meses as reuniões e fala da importância dos instrumentos no começo da procura pela abstinência: “Eu estou em processo de adaptação, não sei como lidar direto e ainda estou no segundo passo, mas os instrumentos me ajudam muito, me dão um caminho e um objetivo o qual alcançar. O primeiro passo e o mais difícil é, de fato, admitir a doença e isso eu já fiz”.
É possível perceber, em cada um deles, a frustração e a vergonha que os assola, mas ao mesmo tempo, a confiança que sentem ao se ouvirem. Olhando para o chão ou encarando os olhos da pessoa que está falando, é transparente a sensação de pertencimento de cada um àquela reunião, àquele lugar, àquelas pessoas e, cada vez menos, à doença. A vontade de se verem livres de algo que os consome e traz consequências maléficas não só ao organismo, mas à autoestima e ao cotidiano dessas pessoas, é visível. “É uma luta constante, como o álcool ou as drogas, mas aqui nas reuniões, eu sinto que vocês são as únicas pessoas que realmente entendem como é ser eu”, diz Fernanda, que fala pouco e parece cansada durante as duas horas, mas se demonstra emocionada. Fernanda revela ser impossível, para ela, comer, por exemplo, só um biscoito do pacote e diz já ter ingerido alimentos congelados.
Após a leitura da passagem diária, há um momento de silêncio e abraço entre todos os participantes, evidenciando a ligação emocional que desenvolvem uns com os outros ao partilharem suas experiências. A todo o tempo, os presentes falam de um poder maior, que pode ser Deus ou qualquer outra força que os mova. O CCA não tem inclinação religiosa, mas a conexão espiritual é mencionada diversas vezes. Todos os membros presentes na reunião naquela noite de segunda feira deixam clara a importância das reuniões não só na vida deles, como na de todos os compulsivos anônimos que procuram um ambiente acolhedor para que possam aprender e serem ajudados com o transtorno. Todos têm acompanhamento nutricional, que não é promovido pelo CCA - o grupo oferece apenas auxílio no tratamento psicológico e espiritual da doença.
Às oito e meia da noite, a reunião encerra-se. Todos formam uma roda e rezam uma oração própria do Comedores Compulsivos Anônimos, em coro e abraçados, em pé. Ao saírem, eles vão lidar com mais uma noite, mais uma luta, mais um jantar.
[As reuniões do CCA acontecem em diversos estados brasileiros. Para obter informações a respeito dos horários e locais das reuniões, acesse o site www.comedorescompulsivos.org.br, mande um email para [email protected]].
Os nomes são fictícios, no intuito de preservar as identidades.