Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir

Era pra ser mais um filme no contexto da Segunda Grande Guerra, numa região da pacata Sicília. Através da perspectiva microscópica de um rapaz na puberdade, começando a ser moldado por um meio opressivo e patriarcal, observamos lenta e deliciosamente a paixão que Renato desenvolve por Malèna Scordia (espetacularmente interpretada por Monica Bellucci), uma senhora que, como tantas outras, espera seu companheiro retornar da guerra, sem filhos ou família para ampará-la, mas conhecida por ter uma beleza descomunal. Mesmo introspectiva e indiferente, Malèna desperta a curiosidade e a maldade dos homens, mulheres e até dos meninos da região. Seu andar pelas ruas é um acontecimento. As pessoas não hesitam em verbalizar deboches e ironias moralistas, além de fuzilá-la com olhares. Renato é o único que, além de amor, sente admiração e compaixão pela mulher, ao invés de descarregar seus desejos e revoltas mais primários sobre o mais vulnerável ser.
Chega a notícia do falecimento do marido de Malèna, sobre a qual até então só recaíam boatos e ofensas. O então “caminho livre” faz os homens tomarem coragem de se aproximarem dela, e as mulheres, mais ódio. Como se a única razão para não cometer uma violação era que, mesmo por trás de sua repugnante beleza, havia um homem a quem respeitar. Renato acompanha tudo, sem nunca ter coragem de proteger a amada de forma ativa, mas funcionando como um fantasma que a circunda e protege sua honra silenciosamente, cometendo pequenos delitos contra os agressores verbais. A crise gerada pela Guerra agrava a situação da mulher, e então Malèna começa um jogo de luta pela sua sobrevivência, seja ela digna ou não, num mundo que a objetifica e se aproveita dela de forma mais conveniente. Uma cena que demonstra sutilmente sua situação vulnerável é quando Malèna aparece nas ruas, novamente secada por olhares, e senta-se numa mesa de bar de uma região muito movimentada, põe um cigarro na boca e prontamente todos os homens do entorno se levantam e a cercam para oferecer o seu fogo. Malèna tem um olhar de desamparo. Ela sabe o que a sociedade fez dela, e não consegue ver uma saída.

Escrevo este texto por identificação. Lembrei-me de Grace (Nicole Kidman) em Dogville. Lembrei-me da Geni e o Zepelim de Chico Buarque. Pode-se representar uma trama de mais de meio século, mas ainda me parece tão atual. Lembrei-me de mim mesma e de todas as mulheres que têm seus corpos e objetificados e suas ideias ignoradas por uma sociedade que se sente dona de seus direitos. Que viola e oprime até o seu limite. Usa-se a religião, a natureza e a moral como desculpa, mas é na verdade um desejo quase animalesco de querer se apropriar de um ser aparentemente mais frágil, devorá-lo e sugar suas características aproveitáveis de modo mais conveniente. O que as faz pensar que se deve respeitar os indivíduos de acordo com o gênero? É um imperialismo de um homem ocidental que não enxerga ninguém como igual senão outro homem ocidental. E mulheres que mesmo inconscientemente não veem outra alternativa senão dar mais voz a essa crueldade de tradição milenar. Mas não se enganem: a hora da opressão a vocês irá chegar.
Malèna é a prova de que, não importa como você aja, os padrões que siga, as normas que respeite; o corpo de uma mulher nunca é dela por direito. Sua liberdade jamais será respeitada. A menos, é claro, que se submeta a imagem de um respeitoso homem. Sonho com o dia em que esses filmes atestarão um passado opressor que jamais viveremos. Quanta realidade mais eu vou ter de assistir até parar de ver a verossimilhança com a ficção?