Amado seja aquele que se senta
Inspirado na poesia peruana de Cesar Vallejo (“Traspié entre dos Estrellas”), Roy Andersson busca no filme “Canções do Segundo Andar” refletir sobre a condição humana e os padrões socioculturais que impulsionam e significam as ações do homem sobre si mesmo e em relação aos outros.
Um jogo entre individuo e sociedade no qual o primeiro está aprisionado aos grilhões do segundo. No filme, o diretor lança a questão de que nós humanos estamos presos a um destino sobre o qual não temos nenhum poder de decisão, cabendo a nós apenas suplicar a esse destino uma condição mínima de existência onde a sobrevivência é o imperativo predominante.
O filme se inicia fazendo uma associação do sentido da vida com o fato da nossa permanência no mundo. Ou seja, viver significa estar nesse mundo cujo objetivo principal consiste em assegurar a nossa própria sobrevivência enquanto vivos estivermos. Por sobrevivência o filme denota a junção entre as necessidades de subsistência (comida) e diversão.
Partindo desse princípio, os seres humanos experimentam uma luta por essa sobrevivência; um duelo entre pessoas ligadas ao coletivo apenas pelo fato de se encontrarem com o mesmo objetivo existencial e que não se vinculam aos outros devido ao risco de não atingir sucesso. Uma luta solitária apesar de coletiva.
A partir desse contexto o filme traz inúmeras cenas que nos levam a reflexões tais como:
1) A dedicação ao trabalho não garante o emprego;
2) Os imigrantes são submetidos a uma condição de subcidadania;
3) Na disputa entre ilusão e realidade, a última sempre sai ganhando;
4) As insônias são frutos do aprisionamento do indivíduo ao cotidiano;
5) A apatia ao trabalho e as relações pessoais vigoram nas instituições;
6) Independentemente da idade, a morte pode ser iminente para todos;
7) Apesar da incerteza sobre o futuro, vivemos o presente em função dele;
8) As relações se estabelecem predominantemente por obrigações sociais e necessidades individuais que muitas vezes nada tem a ver com o outro com quem nos relacionamos;
9) A pobreza apesar de ser uma possibilidade passível de acontecer a qualquer um, implica uma marca classificatória ao sujeito na hierarquia social, integrando a subjetividade deste à objetividade das condições sociais nas quais ele está imerso numa dada configuração de tempo e espaço;
10) A palavra se tornou vazia perante o poder dos documentos. Vivemos uma sociedade burocrática cuja credibilidade do ser humano não está no que ele diz, mas naquilo que está escrito e, reconhecido socialmente;
11) Ninguém está imune à catástrofe, o que nos permite banalizar o sofrimento individual alheio uma vez que todos nós passamos por adversidades. E a catástrofe adquire uma conotação individual, nos fazendo esquecer a raiz social do problema onde nós humanos somos apenas a ponta do iceberg;
12) Estamos submetidos à realidade socioeconômica e política do mundo e nada podemos fazer a respeito mesmo quando somos diretamente afetados, pois o poder de decisão não é nosso;
13) A luta pela sobrevivência nos obriga a exercer profissões que não gostamos e a viver um cotidiano muitas vezes não desejado, não nos permitindo uma liberdade para ser sujeito no mundo;
14) Vivemos e reproduzimos convenções sociais aprisionantes da nossa vida e da nossa dignidade;
15) A fé do mundo consiste no dinheiro e no sucesso;
16) A bebida alcoólica serve como uma terapia para conformar o ser humano ao mundo onde vive, preenchendo o vazio existencial, marcado pelo arrebatamento do cotidiano e das convenções sociais;
17) A loucura é o resultado de quanto o ser humano conseguiu andar pela vida sem se deixar afetar psicologicamente pelo aprisionamento sócio-existencial;
18) O conhecimento acadêmico não é nada mais do que status social. Ele é tão ilusório quanto uma “bola de cristal advinhatória”. Não temos o controle de nada;
19) Muitas vezes não sabemos onde estamos e nem a direção para onde estamos indo. Somos conduzidos pelo fluxo das massas e estamos paralisados nesse movimento;
20) O egoísmo da felicidade utilitária nos impede de exercitar uma compreensão do outro. E na ausência de capacidade empática nos sentimos injustiçados devido aos nossos esforços na luta pela sobrevivência.
O diretor não só ilumina questões sobre a existência como desnaturaliza aspectos comuns do cotidiano, fazendo-nos refletir sobre a nossa condição de humanidade.
Segue abaixo um trecho do filme para finalizar essa primeira reflexão da trilogia existencial de Roy Andersson:
“A vida é tempo e o tempo é a extensão do caminho. Isto faz da vida uma jornada, uma viagem. Para viajar é preciso uma bussola e um mapa. Caso contrário, não saberá onde se encontra. E nosso mapa e nossa bussola são nossas tradições, nosso patrimônio, nossa história. Se não nos damos conta disso, andamos na escuridão”.