Quixote, o cavaleiro errante de Guimarães Rosa e Jorge Luís Borges
O grande marco da literatura moderna sem dúvida foi o livro Don Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes, autor espanhol do século XV. O livro conta a história de um fidalgo espanhol- Quixote, fã de romances de cavalaria que de tanto ler as histórias perde o juízo e passa a se sentir um cavaleiro errante. Sempre na companhia de Sancho Pança e de seu cavalo, na realidade um pangaré de nome Ronicante, ele segue pelas terras de La Mancha, de Aragão e de Catalunha. Nosso aventureiro e corajoso Quixote segue no curso da fantasia, mas sempre é desmentido pela tão dura realidade.
O romance foi lido e relido por diversas gerações de escritores entre eles Jorge Luís Borges e Guimarães Rosa- cânones do século XX. Apesar de nos remeterem a ambientes distintos, o primeiro à Buenos Aires e o último aos Sertões das Gerais, em comum possuem o processo de cravarem os elementos da língua falada no corpo da escrita seja por um encadeamento de sintaxes (Borges) seja em selecionar os significantes e criar neologismos (Guimarães Rosa). Em Borges as histórias surgem em camadas superpostas em passos curtos, girando em torno do mesmo ponto já em Guimarães Rosa esse espaço cresce, pois, a narrativa necessita crescer para assim fluir.
A linguagem dos dois é distinta. Para isso podemos dissecar o conto Pierre Menard, autor de Quixote onde o uso da reprodução proposital de trechos do texto de Cervantes é uma constante e perceber que mesmo repetindo palavra por palavra o autor Pierre Menard não plagia a obra de Cervantes. No conto Menard esmiúça o capítulo XXVI do romance de Cervantes e chega a conclusão que ao transcrever os capítulos que tanto lhe interessam não está imitando a obra do escritor espanhol. Ele muito menos acha Quixote necessário. Difícil ele compor o personagem no século XX pois suas realidades são distintas, enquanto o cenário de Cervantes era a Espanha do século XVII, onde o obstáculo maior estaria em um confronto entre as ficções de cavalaria e a realidade provinciana, a realidade de Menard, mais complexa, está voltada a terra de Carmem durante o século de Lepanto e de Lope. Continua em um exercício de análise e examina outro capítulo e chega `a conclusão que atribuir `a James Joyce a imitação de cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais? Sem dúvida, Borges amadureceu o seu conhecimento sobre Cervantes `a medida que analisou as suas personagens. O Quixote figurante do maravilhoso, do sobrenatural e do assim dizer fantástico, sem, contudo, perder a espinha dorsal da obra e seu aspecto realístico.
Já em Guimarães Rosa com o conto “ Tarantão, meu patrão. O Tarantão é construído como um anti-herói, o velho e sua velha escolta-os quatorze camaradas mais Quixotes do que Sancho alistados no caminho. O leitor descobre que o velho era digamos meio maluco e descendente de sumas grandezas e riquezas. E de pernas compridas, engraçadas e de compridos alvos cabelos e de pescoço comprido, o grande gogó, respeitável e alto e em tudo semelhante ao Cavaleiro da Triste Figura.
Guimarães reescreve na estória o episódio do Quixote e de Sancho Pança com as três lavradoras sobre três burricos. Em Guimarães é só uma “probrepérrima”, a pé, com um feixinho, de lenha e uma criança escarranchada nas ancas. O velho, de chapéu na mão e com as demais cortesias, a “fez montar em seu cavalo, cuja rédea ele veio, galante, `a pé, puxando. E assim a levou até o seu destino, um povoado, onde a “ a pobre e festejada mulher “ se apeou, menos agradecida do que envergonhada.
Chega e parte a cavalo o moço que muito amou e ainda mais amará. E vem de longe, de onde muitas vezes não se sabe, os desterrados, os peregrinos, os sofridos, os que carregam consigo a morte e o destino dos outros. Em “Taranto, meu patrão”, Guimarães Rosa constrói um Quixote voltada para o interior do Brasil- o Quixote daqui é mais velho, um velho “cheio de sandices”, o narrador é o vagalume, o criado – alusão ao escudeiro Sancho Pança. Guimarães jamais se distancia da sua linguagem para construir seu Tarantão- um cavaleiro andante pelos povoados do Sertão. Entram nos arraiais a tropa com os nomes comuns no Sertão (Dosmeuspés, o semedo ,Curucutu, Vagalume, dentre outros).
O narrador está cônscio das sandices do patrão. Em sua aventura segue o descendente de Io João de Barros Diniz Roberts, seu amo, maluco. Apesar de passar vergonha segue o Tarantão. Saiu o Quixote; Tarantão em busca do sobrinho neto, o tal que lhe deu injeções e uma lavagem intestinal. Difícil não conter o riso se ao continuar depara-se o leitor com o “-Mato, mato, tudo “. Endemoniado, segundo Vagalume, segue o patrão solto pensando ser o demônio atrás de vingar-se do sobrinho neto.
O trajeto nos remete ao psicológico dos personagens. Tinha Tarantão uma faca de cozinha enferrujada e esse seria o instrumento para apunhalar o médico, seu sobrinho-neto, causador do seu sofrimento. Ao chegar na casa do sobrinho se surpreenderam com uma festa de batizado da fila do Magrinho. A tropa entra em clima de alegria e são surpreendidos. Termina o conto com Io João Robertes na fazenda com seu trato escelentriste na voz do narrador, voz cortada por um soluço de saudade do patrão amalucado, todavia amigo.
Enquanto Borges defendia um Cervantes desinteressado na realidade de Quixote, muito menos sua psicologia que se pudesse sugerir as razões de sua loucura, e suas aventuras seriam meros adjetivos de Dom Quixote. Guimarães dá um tom bastante engraçado a seu lo Roberts, um velho turrão que pensava em vingar do Magrinho, seu sobrinho neto e médico que lhe fizera uma lavagem intestinal e lhe dera injeções. O motivo tão fútil e inverossímil aproxima o personagem. Tanto Ido Roberts quanto Quixote são personagens da literatura fantástica.
Deixo uma pergunta: A escolha do personagem Quixote está na consciência do seu interior rico, onde há uma gama infindável de possibilidades, aquilo que Michel Foucault define em seu ensaio “as palavras e as coisas” onde pinta nosso cavaleiro andante, nosso herói, como um crédulo das histórias de cavalaria e por tanto acreditar na existência das mesmas ele resolve por bem se travestir de uma personagem? Ele lê o mundo para demonstrar que os livros existem. Nesse caminho de aventuras, Quixote busca as similitudes, as estalagens por exemplo tornam-se exércitos. E seu universo interior, tão rico e ao mesmo tempo tão ingênuo o torna um senhor personagem. Sua pretensa loucura também o torna inverossímil, e, portanto, ficcional ao extremo. A escrita e as coisas não se assemelham mais, sim o nosso Quixote é contemporâneo e sempre o será, já que sua linguagem é criativa e imaginativa, resumo do que seja uma boa ficção. Quixote está a passear no fundo da aventura. Ele reencontra personagens que leram a primeira parte da sua própria historia, e o reconhecem como o herói do livro. Quantas historias podem surgir de Quixote? Por que a escolha de Quixote? Acredito que em Literatura nada é exato e circunscrito. E ao esmiuçar a escrita dos dois escritores, descobre-se similitudes e diferenças, apesar do objeto ser o mesmo.
Percebo que as aventuras do nosso Quixote e seu psicológico não revelado, e daí o lado intrigante do romance são verdadeiros laboratórios para os escritores. Não somente suas possibilidades, mas também seus segredos e mistérios. Somente o fato de ler demais romances de cavalaria não tornaria Quixote um louco, todos nós sabemos disso. Mas mesmo sem saber o porquê acreditamos ser ele um louco, por não distinguir as coisas dos signos. E a partir dessa loucura será o próprio Quixote a literatura, solta, criativa e ficcional?