Olimpíadas da superação no país da superação: até quando?
Terminadas as olimpíadas do Rio, muitas análises seriam possíveis. Por exemplo, os resultados: 19 medalhas, melhor campanha, 13ª colocação. Pífio, se pensar que se trata do quinto país mais populoso e nono mais rico.
Apenas reflexo de um problema grave: não pensar a longo prazo. Fomento ao esporte é uma política pública, que deve andar lado a lado com a educação. O esporte é um caminho para socialização e inclusão. Se andar junto a uma educação de qualidade, o resultado é um salto qualitativo em todos os índices realmente importantes: sociais, econômicos, educacionais. O aumento de medalhas seria mera consequência.
Mas nos acostumamos a ser o país da superação. Nos superamos para entregar uma olimpíada acima do que era esperado, nos superamos para atingir a melhor marca em medalhas e a maior delegação, e nossos atletas superaram francos favoritos para conquistarem o lugar mais alto do pódio.
Mas será que tanta superação assim é algo realmente bom?
Superação como regra
A afinidade por histórias de superação é algo intrinsecamente humano, pelo caráter inspirador. Mas talvez digam particularmente a nós, brasileiros, pelo tanto de batalhas necessárias para a maioria de nós apenas sobreviver – irem trabalhar, serem atendidos em um hospital, conquistarem bens materiais, melhorarem a educação, proporcionarem mais conforto às suas famílias. Somos afeitos à superação, porque convivemos com ela diariamente.
Mas esportes de alto nível envolvem preparação séria e incentivos permanentes. Não planos emergenciais visando medalhas, nem gambiarras para fornecer equipamentos e condições aquém de mínimas, para que atletas treinem, eventualmente se superem e conquistem prêmios improváveis (para serem esquecidos logo após).
Quando há o correto preparo, a superação é apenas aquela reserva adicional, aquele ingrediente secreto que dá o último empurrão para a vitória. O caminho terá sido pavimentado com treino sério (e estruturado) e milhares de horas de dedicação, acompanhada por uma equipe competente e comprometida.
Porém, quando a superação é o ingrediente principal, que vem desde a infância do atleta, de sua insistência em praticar o esporte quando há bem poucos incentivos para isso; e quando as alternativas – subemprego, ou mesmo o crime – são tão piores que o compelem a competir, significa que há algo profundamente errado nesse processo.
Exigência de resultados
A superação como ingrediente principal de uma trajetória esportiva deveria ser uma exceção rara, e não a regra. Claro que a vida de um atleta envolve sacrifícios, renúncia e disciplina que não atingem a maioria das pessoas, e isso não deixa de ser uma luta. Mas o ponto é que a medida está muito errada, se a superação exigida for tamanha que tudo recai no atleta e depende quase exclusivamente de sua obstinação em prosseguir, quando pode lhe faltar até o básico, como alimentação e descanso.
O resultado prático desse descaso é que pouquíssimos desses vencerão tantas barreiras e se tornarão atletas, e menos ainda de nível mundial.
E isso não precisava ser assim. Não é necessário um mar de dinheiro – países mais pobres do que nós, não raro, tem políticas sérias e estruturadas de fomento ao esporte, e colhem ótimos resultados.
E nós? Nós temos os heróis, os medalhistas que a mídia gosta tanto de endeusar. E abraçamos, sem perceber, essa condição: a do resultado. O que interessa (para o público, para o patrocinador, para a mídia) é a medalha. Conseguiu? Pode comemorar. Diego Hipólito sim (finalmente), mas sua irmã Danielle, atleta de elite bem ranqueada há décadas num esporte onde a preparação e a competitividade literalmente deformam os praticantes, não. Thiago Braz, até então ilustre desconhecido, (agora) sim; Fabiana Murer, uma das únicas a rivalizar com a campeã mundial, não.
Favoritismo como um fardo
Como se não bastasse, a priorização da superação na trajetória esportiva e a afinidade que criamos a ela tem outro efeito deletério: atrapalhar os favoritos. Nossos atletas costumam ter mais dificuldades que a média para lidar com o favoritismo.
Nestas olimpíadas mesmo, vimos muitos destaques falharem. Às vezes, com erros normais do esporte; outras muitas, por méritos dos adversários. Mas também, e muitas vezes, por erros que eles não cometeriam normalmente.
Acredito que isso se dê porque, num país tão carente de ídolos, tão afeito a histórias de superação e tão descompromissado com o esporte, o favoritismo pese mais para os nossos do que para atletas oriundos de povos mais maduros, que entendem que a competição de alto nível tem apenas um vencedor, mas competidores tão competentes quanto.
Sobrecarregamos nossos ídolos com a expectativa de redenção pelo esporte: aquela medalha (quase) certa que resgatará nossa autoestima, nossa confiança. E isso se soma à pressão de fazer valer todos os anos de treinamento, de justificar (quando há) o patrocínio, e de finalmente conseguir voz para falar sobre a sua história (que, ainda que eventualmente não trouxesse superação, seria devidamente maquiada pela mídia para mostrá-la às toneladas). Tudo isso está a um passo de se resolver – basta vencer, ou conquistar alguma medalha. Já imaginou o peso disso na hora de repetir uma rotina que você já treinou à exaustão? O corpo e a mente te traem.
O que precisa ser superado
Claro que atletas de outros países e culturas também sofrem pressão por resultados. Mas creio que seja um pouco pior aqui no Brasil, até pela construção de nosso entendimento como povo e dos valores que herdamos (cultura cristã, glorificação do sofrimento, complexos, diferenças sociais abissais). A cobrança é maior, e a superação se torna uma escada, e todos querem e precisam galgá-la, já que não costumam e quase nunca podem contar com nada nem ninguém além de si mesmos.
Mas o que realmente traz resultado é o trabalho sério. A superação ajuda, mas não é dela o maior peso. Trocar o preparo necessário por uma busca de superação é autossabotagem. Na verdade, muito comum até. Como muitos, que não estudando a sério para uma prova ou concurso, vão na "base da raça"; se passar, é genial; se não passar, a desculpa está prontinha: "ah, nem me preparei direito mesmo..."
Somente assumindo o trabalho do preparo, do planejamento, do incentivo, da estrutura e da capacitação para o esporte é que os resultados começam a vir, de forma sólida e permanente. Isso vale para países, mas também para cada pessoa; para o esporte, mas também para toda e qualquer atividade que alguém se preste a fazer. Preparo, transpiração, suor, dedicação - ao fim e ao cabo, é isso o que vale.
Precisamos superar a cultura da superação. Em tudo. Precisamos assumir e valorizar o preparo, em todos os níveis e extratos. E cobrar a instituição de políticas públicas que incentivem e favoreçam o esporte e a educação.
Porque um povo preparado não é apenas um maior medalhista olímpico: ele é mais seguro, mais decidido, mais maduro e por tudo isso, mais respeitado, menos manipulável e mais relevante.