Arte Brasileira - Antropofagia Cultural e o Movimento Tropicalista
O cenário musical brasileiro no início dos anos 60, pós-bossa nova, estava fortemente marcado por um sentimento nacionalista, ligado à esquerda política. Sem medo de transpor barreiras, a Tropicália apareceu para sacudir as estruturas da música brasileira e mostrar que era possível fazer um som com cara de "coisa nossa", mas muito sintonizado com elementos da cultura jovem mundial. Nascida entre as décadas de 1960 e 1970, a Tropicália teve como principais ícones: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, o maestro Rogério Duprat, seguidos por Mutantes, Gal Costa, entre outros.
O movimento Tropicalista - seu projeto e realização - encontra eco em outras manifestações artísticas do período: nas artes plásticas com Hélio Oiticica, no cinema com Glauber Rocha e no teatro do Grupo Oficina. Não é por acaso que a obra de Hélio Oiticica vai batizar o álbum “Tropicália” e o movimento musical dos baianos de 1968 e ainda criar uma agitação cultural muito mais ampla, o tropicalismo.
A Tropicália pode ser definida como um caldeirão cultural - a união de todas as artes e de elementos populares com o pop e o experimentalismo estético – que criaram juntos um movimento sincrético, inovador e incorporador, capaz de impulsionar a modernização não só da música brasileira, mas da própria cultura nacional.
Tropicalismo
O termo Tropicália nasce como nome da obra de Hélio Oiticica (1937 - 1980) exposta na mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, em abril de 1967. A obra pode ser descrita como um ambiente labiríntico, com plantas, areia, araras, poemas-objetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão.
A obra tinha o objetivo de constituir-se em uma imagem brasileira pela "devoração" dos símbolos da cultura do país. A idéia da "devoração", nada casual, remete diretamente à retomada da antropofagia e ao modernismo em sua vertente oswaldiana, da qual se beneficia a obra de Hélio Oiticica.
A obra ambiental de Oiticica leva ao limite a idéia de participação do espectador - já posta desde seus Núcleos e Penetráveis, de 1960 e 1963 -, assim como o projeto de aproximar a arte das coisas do mundo, borrando as fronteiras entre arte/antiarte.
A Obra “Tropicália” de Helio Oiticica se inscreve na perspectiva da arte contemporânea e da arte conceitual, e dialoga com as ideias do francês Marcel Duchamp (1887-1968), um dos artistas mais importantes do século passado. A partir do ready-made, a incorporação de um objeto industrializado como obra de arte, Duchamp crítica todo o circuito das artes e apresenta a arte como questão. O objetivo de Duchamp era de democratizar a arte por meio da interpretação individual e da aproximação dos seus objetos do grande público. Para Duchamp, o sentido é produzido pelo próprio olhador da arte. Nesse momento, a arte ultrapassa a estética e passa a ter como ponto central o pensamento.
Os tropicalistas de ontem e de hoje são antenados aos acontecimentos no mundo, mas tem o pé e o coração fincados no Brasil. A arte contemporânea tropicalista se revela nas críticas sociais e na crítica aos sistemas que integram o circuito elitista de arte no mundo. Para eles, o museu é a experiência cotidiana, é a sensação de criação, de apropriação e de invenção que a arte pode propiciar por meio do questionamento e da elaboração do pensamento. E é com este olhar sensível que a arte se revela a cada um.
Guardadas as diferenças existentes entre as diversas artes e a variada produção abrigada sob o rótulo, as produções tropicalistas compartilham o experimentalismo característico das vanguardas com o tom de crítica social. Em todas elas, a mesma tentativa de superar as dicotomias arte/vida, arte/antiarte.
Modernismo - Antropofagia Cultural
No dia 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral oferece a Oswald de Andrade (1890 – 1954), a obra Abaporu, 1928, que em tupi-guarani significa "antropófago", nome escolhido para aquela figura selvagem e solitária. Oswald de Andrade funda logo em seguida o Clube de Antropofagia e publica o Manifesto Antropófago, escrito que inaugura o movimento e teoriza a antropofagia cultural brasileira. O texto elege o “canibalismo” no sentido positivo de deglutir a cultura de outros países e de transformá-la, por meio de um processo crítico de formação da cultura brasileira.
O comportamento estético defendido pelos modernistas se baseia na assimilação crítica das idéias e modelos europeus. A arte de deglutir se serve a produção de algo genuinamente nacional, sem cair na antiga relação modelo/cópia, que dominou uma parcela da arte do período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX.
Em linhas gerais, o Modernismo da Semana de 22, caracteriza-se por uma dupla vocação: atualizar o ambiente artístico brasileiro, colocando-o em contato com as diversas linguagens das vanguardas européias e ao mesmo tempo voltar-se para apreensão do Brasil, em um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma.
A idéia de antropofagia como procedimento estético é conscientemente retomada, em meados dos anos 1960, com o movimento tropicalista de 1967-1968. A institucionalização desse conceito dá-se em 1998 quando a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, de maneira discutível, é organizada segundo o tema "Antropofagia e Histórias de Canibalismo", propondo a construção de uma outra história mundial da arte, ou seja, uma história que adotasse um ponto de vista não-eurocêntrico. Propõe-se então a atualização e, curiosamente, a internacionalização da antropofagia oswaldiana.
A arte de deglutir e reinventar a cultura mundial em nossas criações e invencionices é que fazem do Brasil um dos países mais interessantes e criativos que existem. Em todas as suas formas de expressão artística há um dialógo, um fazer cultural que é a soma e a recriação desse caldo multicultural denso, profundo e esteticamente híbrido.