O que aprendi fazendo a barba
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Faz coisa de dez anos que cidades como Paris, Londres, Milão, São Paulo e Nova Iorque viram brotar como trepadeiras as barbearias que reproduzem o ambiente dos salões de antigamente. Pisos de pastilhas, cadeiras de couro bicolor, pôsteres de carros clássicos, gomalina no cabelo dos rapazes e outros adereços dão conta desse universo retrô - que à exaustão vem ganhando entusiastas nas grandes metrópoles.
Porém não é só de simulacros que este mercado perdura. Em sentido oposto ao contexto de salões que surgem como coqueluche em nosso ocidente estandardizado, a região central da capital chilena guarda um breve resquício dos barbeiros que executam, ainda hoje, sua profissão com o mesmo ritual de seus ancestrais.
Nada de fotos de mulheres nuas, veículos de 1960 e tampouco o ranço do rock & roll estampado nas paredes. O que se configura no bairro Yungay - onde se localiza a Peluquería Francesa, a mais clássica referência de barbearias de Santiago - é sem sombra de dúvidas um real espectro do passado.
Criada em 1868, a centenária edificação carrega a insígnia de um dos costumes que marcam a história da Roma Antiga e do siciliano Ticinio Menas, considerado um dos primeiros profissionais da área.
Num passado imemorável, os atos de cortar os cabelos e aparar a barba eram parte de uma cerimônia religiosa do clero romano. Chamados de Torsons, os primeiros barbeiros tinha o mesmo status de outros artesãos e eram parte da vida diária da população de Roma.
À época, utilizava-se lâminas e facas, normalmente feitas em bronze; espelhos, onduladores de ferro, pinças, pomadas e perfumes. O gesto de um jovem fazer a barba pela primeira vez integrava esta memória sociocultural de uma família e de uma comunidade - e o feito vinha carregado do signo de inserção à idade adulta.
Mais do que uma necessidade estética, o ritual de barbear-se levanta crenças, costumes, protocolos sociais, condutas e memória. Por isso, num contexto antropológico, o "saber fazer" e a disseminação deste modelo evoca a transmissão do conhecimento adquirido por nossos antepassados, favorecendo a identidade e as práticas de um patrimônio cultural imaterial.
O Museu De La Perruqueria Raffel Pages, localizado em Barcelona, na Espanha, registra parte deste conteúdo histórico que permanece cultuado até a atualidade.
Muito além da moda em todos os âmbitos, os cortes de cabelo e o desenho das barbas segmentavam a ordem social e o nível que cada indivíduo carregava – e é um pouco desta simbologia que o museu resgata.
Dentre as tantas influencias da França na cultura ocidental, a moda do barbeiro se expandiu definitivamente a partir do reinado de Luís XV - marcado por uma extensa relação estética. Não à toa, Paris assinalou a expansão comercial destes profissionais. Em 1767, a cidade contava com 1200 peluqueros, favorecendo diretamente o desenvolvimento da profissão na Inglaterra e na Rússia.
A Peluquería Francesa é em certa medida a edificação destes significantes na América Latina. Frente ao cenário dos últimos anos, em que as barbearias ganharam cores de pós-modernas e descoladas, barbear-se pode ser também um ato de perpetuação e assimilação cultural.
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Texto disponível em espanhol em: Nicotina & Cafeína