A trilha sonora da “nova classe média”
Músicas são bons retratos de uma época. Certa vez, um crítico afirmou que bastava ouvir o último disco do Chico Buarque para saber como estava o Brasil durante os anos do Regime Militar. Assim como o samba-exaltação durante a Ditadura Vargas, as composições românticas dos anos 40 aos 60, as letras mais engajadas no já citado período militar, os questionamentos juvenis na década de 80 e a sexualidade nos anos 90, podemos afirmar que a ostentação de determinados bens materiais é a temática mais recorrente nas letras da maioria das músicas hodiernas.
É certo que em países como o Brasil, onde o capitalismo ainda preserva fortes traços aristocráticos, ostentar é uma condição sine qua non para alguém poder se identificar com determinado setor da sociedade. Entretanto, nos últimos anos, com o surgimento da chamada “nova classe média”, a questão do consumo se tornou uma obsessão extremamente doentia em nosso país.
Nesse sentido, não é por acaso que o sertanejo universitário (que ressalta em suas letras o “carrão”, a roupa de grife e a balada da moda) e o funk ostentação (o nome já diz tudo) compõem a trilha sonora dessa “nova classe média” extremamente consumista.
De acordo com os mais recentes estudos sociológicos, o termo “nova classe média” é utilizado para designar os cerca de quarenta milhões de brasileiros das classes baixas que ascenderam socialmente na última década. Ao contrário da tradicional classe média (relativamente politizada), a “nova classe média” é alienada e pouco instruída. Enquanto a “antiga classe média” tinha como principal característica a capacidade de converter capital econômico em capital cultural, ou seja, um estilo de vida que pressupõe o hábito de leitura ou frequentar lugares como teatros e feiras culturais; a “nova classe média” é composta basicamente por indivíduos que têm no consumismo exacerbado praticamente a única forma de legitimar sua atual posição social.Isso explica, em parte, porque a antiga classe média apreciava composições com conteúdos engajados e a “nova classe média” prefere músicas com temas mais leves.
As letras das canções que fazem a trilha sonora da “nova classe média” têm basicamente os mesmos enredos. O sujeito era desprezado na época em que era pobre, mas passa a ser valorizado socialmente quando melhora sua condição econômica. “Já não faz muito tempo que eu andava a pé. Não pegava nem gripe, muito menos mulher. Agora eu tô mudado. O meu bolso tá cheio. Mulherada atrás”. “Quando eu passava por você na minha CG você nem me olhava. Do dia pra a noite, eu fiquei rico. Tô na grife, tô bonito, tô andando igual patrão. Tô tirando onda de Camaro amarelo. E agora você diz: vem cá que eu te quero”.
As letras que mencionam marcas famosas também não poderiam faltar no repertório da “nova classe média”. “A nossa roupa é da Ed Hardy, Rio Local ou da Armani”. “Tapa, tapa, tá patrão. Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley. Camisa da Oakley, olha a situação”. “Vem ni mim Dodge RAM Focker duzentos e oitenta. A mulherada louca”. Em relação às baladas da moda, os anseios por distinção social são citados sistematicamente. Todavia, não basta apenas frequentar os lugares mais disputados, é preciso se destacar (pela ostentação, é claro) na multidão. “Camarote já tá reservado. Uísque, Redbull. Elas mandam buscar”.“Áreavip, uísque, no camarote só as top de elite”. Em suma, a nova classe média, que ao ascender socialmente poderia contribuir para construir um país melhor, prefere se limitar ao consumo desenfreado e à completa alienação política.
Por outro lado, seria extremamente inócuo (e até injusto) exigir engajamento social de indivíduos formados pelo péssimo sistema público de ensino, por faculdades particulares caça-níquéis, e que, não obstante, são telespectadores de programas de auditório, novelas e reality-shows. Infelizmente, mais um período de grande ascensão econômica no Brasil não foi acompanhado por semelhante processo de conscientização coletiva. Lastimável realidade.