A hora de Val, uma estrela
Inexistência de mobilidade social. Rígido sistema de castas. Condicionamento de indivíduos por meio de alteração química de seus organismos, tortura e hipnopedia. Alfas, Betas, Gamas, Deltas e Ípsolons. Esse é o cenário de Admirável mundo novo, mas parece se encaixar perfeitamente na realidade de Que horas ela volta?, filme de 2015 dirigido por Anna Muylaert e estrelado por Regina Casé.
Val é empregada doméstica em tempo integral na casa de uma mesma família há anos. Ela literalmente mora no trabalho, atendendo os patrões até nos serviços mais simples: pegar um pote de sorvete na geladeira, tirar os pratos da mesa e encher de água uma forma de gelo "esquecida" vazia no freezer.
Val conhece muito bem o seu lugar. Sabe que não deve abusar da boa vontade dos patrões: se lhe oferecem algo, deve gentilmente recusar, afinal só estão sendo educados e esperam que ela faça o mesmo. Transita durante grande parte do tempo entre a cozinha e seus aposentos nos fundos da casa. Quando passa pelo corredor que dá acesso aos quartos, temos até dificuldade de enxergar o que se passa: a escuridão da imagem revela que aquele território lhe é quase proibido.
Val não reclama e não questiona. Para ela, as coisas são, sempre foram e sempre vão ser assim. A empregada age como se tivesse nascido para ocupar aquele papel e aquele lugar. Diz, inclusive, que essa etiqueta entre patrão e doméstica "a gente nasce sabendo". E foi aí que me lembrei de Admirável mundo novo.
Se estivéssemos no universo criado nesta ficção científica de Aldous Huxley, seria aceitável acreditar que Val deveria passar sua existência desempenhando a função de empregada doméstica, pois, no livro, existe o condicionamento desde o momento em que o indivíduo ainda é um embrião. No entanto, aqui, estamos falando de uma realidade dura e crua, na qual o condicionamento aparece de formas bem mais sutis, mas que têm o mesmo propósito:
Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar (Admirável mundo novo, de Aldous Huxley).
Como não pensar, também, em Macabéa, protagonista de A hora da estrela, de Clarice Lispector, ao analisar Val? Ambas as personagens são nordestinas, profundamente conformadas com seu lugar, e acreditam ser assim porque é assim e pronto, sem se dar conta de que seus papéis são construídos e mantidos socialmente, não existindo em si mesmos (coincidência ou não, A hora da estrela foi o penúltimo filme brasileiro dirigido por uma mulher escolhido para representar o país na disputa pelo Oscar, há 30 anos. O último foi Que horas ela volta?).
Por meio da socialização, Val provavelmente passou a vida inteira absorvendo que é pobre, e que pobre não tem oportunidade - até mesmo porque as oportunidades são poucas, de fato. Ela provavelmente passou a vida inteira absorvendo qual é a aparência dos patrões - brancos, vestidos com roupas cujos preços ela nem pode imaginar - e sabe que não é a dela - parda, e de uniforme. Ela sabe que não pode se dar certos luxos. Não pode tomar o sorvete de Fabinho nem dar um mergulho na piscina nem comer à mesa. Não pode nem ter vida própria nem cuidar da filha, que passou dez anos sem ver.
E é com a chegada da filha Jéssica, já adulta, que temos um interessante e essencial conflito de visões de mundo. A menina se recusa a ser colocada como inferior - o que, ironicamente, é confundido com petulância, uma vez que pobre não pode ousar se colocar no mesmo nível do patrão. Ela não quer pertencer a nenhuma casta. Permite-se ter ambições: estuda com afinco para passar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, apesar de todos duvidarem de seu sucesso. Quer comer à mesa, tomar banho na piscina e sorvete de amêndoas. Assim, entra em confronto direto com a mãe por ser totalmente contra esse sistema que representa uma forma de escravidão contemporânea.
O filme é recheado por personagens e relações complexas e contraditórias. Vemos o distanciamento entre os integrantes da casa, ao mesmo tempo em que Fabinho, filho do casal, recorre à Val em busca de carinho e abrigo, o que não significa que acredite que ele e a empregada estão no mesmo patamar. E Jéssica passa a ser vista como uma pessoa interessante e inteligente perante o patrão, que interage mais com ela do que com a esposa ou o filho. Dessa forma, Anna Muylaert mostra que é possível, sim, a coexistência entre amor e preconceito. A frase "tenho até amigos que são" nunca fez tanto sentido.
É extremamente incômodo ver o desenvolvimento da relação entre Jéssica e os patrões de sua mãe. Anna Muylaert transmite um crescente desconforto, gerando tensão em praticamente todas as cenas por meio de silêncios, expressões faciais e atitudes que não dizem aquilo que realmente querem dizer. Vemos com tristeza os desencontros entre Jéssica e Val, com repugnância o assédio sexual de Zé Carlos, e com raiva as atitudes de Bárbara com a menina.
Ao mesmo tempo em que suscita no espectador tamanha repulsa pela sociedade em que vivemos, Que horas ela volta? também é capaz de transmitir ternura a tal ponto de nos deixar com lágrimas nos olhos, utilizando-se, para isso, principalmente de pequenos gestos, olhares e tons de voz insinuantes. Nesse segundo caso, é impossível deixar de mencionar o anúncio feito por Val de que a filha passara no vestibular e a subsequente entrada libertadora da empregada na piscina dos patrões.
Que bom que Val, diferentemente de Macabéa, não precisou estar à beira da morte para ser uma estrela. Val foi salva por meio de sua filha, que a fez abrir os olhos para aquilo que não queria enxergar. Assim, Val foi capaz de se desprender das correntes e decidir ser a estrela de sua própria vida, e não uma figurante na vida dos outros.
Vencedora de vários prêmios internacionais, esta é uma obra essencial para se pensar as questões sociais e o preconceito velado no Brasil. Val é "de casa", mas de forma alguma pertence àquele lugar - ou melhor: não deixam que ela pertença. E certamente não se trata só das empregadas domésticas. Podemos colocar no lugar de Val uma gama de outras profissões que são desvalorizadas, uma variedade de indivíduos que são inferiorizados e passam a acreditar no (des)valor que lhes é atribuído pelas classes mais abastadas.