apontamentos sobre roupa ao vento
Uma cidade para ter energia positiva tem de produzi-la. Até pode importar, é fácil confundir o âmbito de livre circulação e mandar vir quatro camiões de vida e alegria. Mas depois esgota-se. O que nos chega pela metodologia [sugar] esgota-se muito rápido, a luz apaga. E enquanto a própria cidade não produzir, no sentido do positivismo, luz própria - pode durante umas horas sugar um modelo de energia, que funcionou num determinado local para determinadas pessoas mas depois poufh de tão pequeno, tão aquém do além mar.* A energia tem, antes de qualquer outro esforço, borbulhar dentro. A construção deve começar desde esse ponto. A não acontecer a cidade ficará apenas perdida daquilo que a define a si mesma, por tradição e identidade. Fica longe, fica cada vez mais longe das diferenças que nela gorgolam todos os dias, e uau: por energia própria. Ninguém se perdeu, continuamos a falar de fachadas. Só que também do que está vivo atrás delas.
De volta ao misterioso nevoeiro percebo que o Porto tem obra mundial e histórica, tem beep em continuidade na humidade: a mesma que vos embala o Vinho, a mesma que não nos seca a roupa. Existiram preocupações na arquitetura sobre a vivência coletiva no centro da cidade, as habitações são colocadas em torno de uma fenda ao sol, mas com dois socalcos se constrói uma cascata.* O que nos trouxe os recantos improváveis para confissões de amor - eu sei, porém a tendência é para edifícios estreitos com áreas reduzidas, um império de racionalidade nas dimensões. O património é da humanidade, a estrutura fica. O desafio passa por tirar partido das caraterísticas originais dos espaços e haver descoberto na vida espiritualidade q.b para leave the gun, take the cannoli.*
Ter uma varanda ajuda muito, obrigado. As tentativas de abertura ao exterior passaram pelo rasgo de luz em espaços tão interiores e o desdobrar em desculpas é representativo. Vãos envidraçados, recortes de telhas em vidro, inquestionáveis serão as clarabóias. E tantas! A sensação é que a procura do exterior chegou à imaginação antes da disciplina urbanismo chegar à população. A cláusula era obrigatória: humidade. A roupa lava-se no Douro. Seca-se na rua. Nem área para uma solução interior, ou um espaço mediador, oferecem as casas.
Mas estas coisas da humanidade são maravilhosas porque explodem por afinidades. A roupa a secar ao vento nas fachadas é uma das imagens de marca de Portugal. Pano de fundo da questão identitária. Também gosto muito da velhinha parada num alto, mão na testa - mão no rim, à espera, a olhar para o mar, tão velhinha e ainda à espera. Só pode ser amor, tanta espera e saudade. Felizmente para Portugal, quem ergue uma imagem de marca é o recetor. Não é claro para mim, se pelos meus trajetos diários encontro mais turistas escondidos aos beijinhos, ou a fotografarem a nossa roupa a secar. Não ver nisto rasgo espontâneo para brand equity parece-me só tonto.
A fotografia foi tirada em Madri, 2013. O que é ter uma janela e o que pode acontecer nela. Desde domingo que me sinto estranhamente melindrada, sinto que um bem natural tão adquirido . o vento . me foi regulado, minimizado no acesso - As nossas cordas, sabia? São proibidas.
- Mas então menina onde querem eles que a gente seque a roupa?
- Dona Estelinha, foi precisamente a minha conclusão esta semana. A única explicação que encontro é tratar-se de um erro por ingenuidade, os meus favoritos: os da inocência. Inocente 1: o senhor legislador nunca viveu um ano nestas casas do centro histórico, o senhor legislador não percebe o que a noite levanta ao rio. Inocente 2: o senhor legislador consegue prever na sua economia doméstica o excesso de consumo na energia que traz uma máquina de secar a uma vida como a nossa - Ai menina! - até porque o senhor legislador consegue, ainda antes disso, comprá-la. Inocente 3: o senhor legislador, mental legislador, legisla com os formatos que estagnou por viver num apartamento com quatro quartos, sete corredores, três metros quadrados para um salão de lavandaria. Inocente 4: o senhor legislador resolve qualquer pensamento sobre roupa lavada com contratação de serviços, vinte peças por vinte euros. Inocente 5: o senhor legislador dona Estelinha, nunca tratou da sua própria roupa na vida. Money - money, must be funny in the rich man’s world.*
A dona Estelinha e eu estamos incluídas na zona de afetação protegida pelo regulamento da Câmara Municipal que prevê a proibição dos formatos habituais quando o assunto é secar roupa nas fachadas portuenses. Com a ajuda do público, atingiu lugar em [Perguntas Frequentes].* Uma pergunta tão frequente parece-me não ter acalmado solução suficiente. Quem regula pode determinar o não - no que toca à alteração da estrutura de uma fachada no núcleo histórico. O que quem regula não pode ambicionar é que se esconda o camião de vida e alegria que é viver nele.
Porque pomos uma árvore no natal e arejamos colchas com as velas da procissão, vais lá pôr a bandeira a pedido do treinador da bola. São só expressões, sinais de gente. [Imigration is not a crime] e por duas vezes, uma companhia de teatro precisou das nossas varandas para a sua apresentação. Quem me dera. Dera-me tanto. Daí a ouvir-se a ordem sobre balonas e bandeirinhas para uma festa ao São João é um estende e apanha de calças - toalhas - fardas, com aviso comunitário sobre início de chuva. Há pregão. As nossas janelas jamais serão alinhadas em sardinheiras. Atiço, desafio - turbilhão.
O ideal do urbanismo será encontrar a harmonia do espaço sobre pessoas. Pode ser? Uma harmonia que será codificada para pessoas com batimentos cardíacos contínuos, para pessoas que continuam a acontecer, que não se encerram no silêncio de três frases reguladas, pessoas com desesperos e máquinas de roupa por fazer, com alegrias e sentido de sobrevivência suficiente para as querer.
E se o que estiver por detrás da intenção da regulação em . roupa não . for apenas uma futilidade pomposamente esteta? Haverá mesmo vazios para tudo? Senhor turista, se fizer o favor, reflita sobre o enquadramento legal do cuecão. A cidadania prevê que eu não vá sacudir à varanda as migalhas do jantar com o Romeu. O urbanismo determina que não posso fechar a varanda numa resolução ap para lavandaria. Mas o gozo da tua cidadania ensina-te a questionar o urbanismo. Por isso é que é bom investir em cidadania, quem cá vive colabora mais com o que queremos todos: urbanismo. Parece-me que as únicas pessoas com poder moral e de regulação sobre a roupa que estendo na minha varanda são naturalmente Romeu, ou uma Estelinha por vizinha de baixo.
-- * a marca [aquém versus além mar] está registada, a sua patente pertence a Luiz Vaz de Camões | ‘com quantos paus se faz uma canoa’, sabedorias populares | blessed The Godfather | go for Abba | and quote: “Perguntas frequentes. Posso colocar um estendal na fachada da minha casa? Não. Conforme o Código Regulamentar do Município do Porto - Parte B, a colocação de estendais nas fachadas dos edifícios não é permitida’ - informação municipal online disponível em 6 de abril de 2015.