sobre milagres
Um milagre só acontece em um local onde ele não é esperado. Se Pondé disse que só se mede a humildade quando você tem razões objetivas para não tê-la, o mesmo serve para milagres. O seu nível de sobrenaturalidade se mede, na visão humana, segundo a possibilidade gritante de naturalidade daquela situação.
A sobrenaturalidade, aliás, só existe e leva esse nome porque na naturalidade existe uma corrente de acontecimentos e fatalidades que tiram do homem a cobertura de recursos que anteriormente ele tinha, para o apresentar ao seu verdadeiro eu, nú.
Recursos esses que denunciam a hiperfragilidade da sociedade que tudo protege, mas nada domina. A paranoia virou estilo de vida. Qualquer curva imprevista e indomável torna-se uma prova de força, haja vista a condição de sensibilidade do homem, que preso às grades dos condomínios, esqueceu o que é sentir medo, experimentar limites, ser deslocado da zona de conforto.
São essas dificuldades naturais da vida que têm o poder de apresentar o homem prevenido ao homem consciente da fragilidade da vida. É nesse cenário caótico de trabalho, violência e stress - pouco propício à aplicação de doutrina ou filosofia em atitudes práticas - que o dito milagre surge como a maior ponte terrena capaz de apresentar o homem à fé - ou a ele mesmo.
Se quem foi contemporâneo à Jesus acostumou-se em vê-lo caminhar sobre as águas, quem vive nos tempos modernos não precisa de muito para ver “a mão de Deus” em ocasionalidades. Da mesma forma que o milagre se estabelece em locais não-esperados, a atmosfera de rompimento das expectativas se estabeleceu na sociedade dos planos de saúde e seguros de carro.
É um paradoxo compreensível, haja vista a falta de energia humana aplicável a uma reflexão sobre fé, vida e fragilidade. Vivemos no piloto automático, e vida e planos cabem em uma agenda. O mercado de trabalho é uma fábrica de novas doenças e as relações são celeiros de problemas. Não há tempo para fragilidades. Mas quando elas aparecem e são vencidas, uma novo eu, consciente das tantas camadas da existência, nasce.
O milagre, com sua vocação ecumênica e íntima, parece soprar ao homem uma essência de sobriedade que pouquíssimas outras situações sopram. É um arquétipo universal, que narra o quão doce pode ser a quebra de regras da própria existência, e o quanto a queda das motivações naturais – e a ascensão das motivações superiores – podem apresentar o homem, ao mesmo tempo, à sua fragilidade e força, escondidas por detrás das burocracias. É como se a justiça da vida, enfim, se curvasse à alguns e alcançasse às nossas desordenadas tendências.