Morte e vida no livro "O dia que Selma sonhou com um ocapi"
Poucos são os livros nos quais já na primeira linha intuímos estar diante de uma obra-prima. Um bom exemplo é O dia que Selma sonhou com um ocapi, de Mariana Leky. A primeira frase do livro, no maior estilo alemão de concisão, que a tradutora Claudia Abeling engenhosamente soube transpor para o português, é: "Quando Selma disse que tinha sonhado com um ocapi de noite, estávamos certos de que um de nós haveria de morrer, e ainda por cima nas vinte e quatro horas seguintes".
A Selma citada é a avó de Luise, a protagonista da história. Contado pela perspectiva de Luise, o livro constrói uma narrativa sobre a habilidade de Selma em prever a morte de alguém próximo ao sonhar com um ocapi, um excêntrico animal cuja existência real é comprovada pelo leitor após uma simples busca no Google.
Foto de um ocapi e seu filhote feita por Alan Eng.
Alan Eng From Brussels, Belgium - https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=41159861
O livro descreve as sensações que Luise e os demais habitantes da pequena cidade em que vive experimentam ao saberem que em 24 horas alguém terá partido, talvez eles mesmos. O misticismo do sonho está presente no livro, mas também a realidade da morte, unindo fantasia e realidade.
A questão central do livro é o aprender a lidar com a morte, mas em um sentido mais específico a temática da obra concentra-se na conscientização de que a morte é uma parte corriqueira de nossas vidas e como tal deve ser entendida (sendo que costumamos ignorá-la por puro receio de que, ao nos conscientizarmos de sua existência, possamos atraí-la).
Capa original, cujo título traduzido seria algo como "O que se pode ver daqui".
Chama atenção no romance de Leky sua habilidade para descrever a morte de um modo leve, ainda que não romantizado. Além disso, a autora é hábil em elaborar personagens extremamente verossímeis: o oculista, que nutre um amor platônico por Selma; a triste Marlies, que no decorrer do livro tem a oportunidade de encarar a vida de forma mais positiva (caso tenha disposição para isso); a supersticiosa Elsbeth, a melhor amiga de Selma – todos soam tão naturais que conseguimos antever traços de suas personalidades à medida que avançamos na leitura, e identificamos um desenvolvimento evolutivo em cada personagem com o passar dos anos, assim como ocorre na vida real a partir dos aprendizados advindos de nossos erros e acertos.
Teria sido esta a inspiração para o título em português ou será que foi o contrário?
O único aspecto que destoa dessa elaboração tão verossímil é a vida amorosa de Luise. Em razão de um trauma de infância, é plausível haver problemas de relacionamento, mas a opção da autora em destrinchar isso em todo o livro fica aquém de outras histórias muito mais ricas presentes no romance. Os relacionamentos de Luise são superficiais e é inevitável questionar se na vida real seria possível sentir tanto amor por um monge do outro lado do mundo com o qual mal conviveu, por exemplo. Aliás, esta parte do livro surpreendentemente é menos crível do que o poder de Selma de prever mortes.
No Brasil o livro foi editado pela TAG e junto também vai uns brindes temáticos, como mostrado nessa foto de divulgação do Facebook deles. Será que algum dia também terá uma edição para quem não é assinante?
Mas justiça seja feita, a artificialidade só se configura nas relações de Luise, nas demais, como o amor platônico do oculista por Selma e o casamento em frangalhos dos pais de Luise, fica clara a habilidade da autora em retratar esse tipo de situação, o que me leva a crer que essa sensação de estranhamento provocada pelos envolvimentos amorosos de Luise desempenha um papel na narrativa: a vida de Luise pode ser vista como uma metáfora desse sentimento incômodo que por vezes temos de que algo em nossas vidas não está certo.
Mariana Leky na Feira de Livros de Frankfurt, 2017. (Mariana Leky auf der Frankfurter Buchmesse 2017. „Was man von hier aus sehen kann“
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0c/Mariana_LekyFrankfurt2017.jpg)
Sendo assim, só tenho a recomendar a leitura deste livro. O romance é um exemplo do chamado realismo mágico, cuja característica principal é a junção entre fatos da realidade e elementos fantásticos. Como é de se esperar, livros assim precisam ser bem estruturados para soarem convincentes, e Mariana Leky tem talento para fazer acontecimentos mágicos se mesclarem a uma história trivial pertencente a todos nós – a consciência de que, cedo ou tarde, teremos de lidar com a morte de nossos entes queridos e encarar que, invariavelmente, enfrentaremos a finitude de nós próprios.